O ecossistema de inovação inclui boas ideias, propósito e, geralmente, tecnologia. Os mesmos adjetivos podem ser atribuídos às startups. Em 2019, de acordo com a Associação Brasileira de Startups, o Brasil tinha mais de 12 mil startups dos mais variados segmentos. Neste universo, um número muito pequeno (menos de uma centena) pode ser classificado essencialmente como GovTechs, startups que tem como foco prover soluções tecnológicas inovadoras para resolver problemas do setor público.
Embora o mercado de investimentos de startups no país tenha dobrado em 2020 em relação a 2019, alcançando cerca de R$ 2 bilhões segundo dados prévios, a área de GovTechs comemora um recente aporte de R$ 8 milhões feito a uma startup brasileira desse tipo. O valor é alto para o nicho, mas pouco diante do potencial e do montante de investimento. A grande pergunta é: por que um país com tantos problemas considerados públicos e com um governo que muitas vezes não consegue prestar um serviço de qualidade às demandas dos cidadãos, não possui um ecossistema de GovTechs desenvolvido?
De uma forma geral, o setor público brasileiro se atentou para o fato de que a tecnologia é uma das grandes aliadas na resolução dos problemas do cotidiano do brasileiro. Prova disso é o investimento feito em TI anualmente. Segundo dados do próprio governo, juntas, as três esferas governamentais do poder executivo (municípios, estados e Federação) investem cerca de R$ 25 bilhões/ano, sendo que de R$ 6 a R$ 8 bilhões/ano é somente referente ao governo federal. A preocupação com o governo digital colocou o Brasil na 54ª posição na Pesquisa sobre Governo Eletrônico 2020 da Organização das Nações Unidas (ONU). Com 194 nações, o estudo mostra ainda que o país é 20° em oferta de serviços públicos on-line e apresenta avanço na transformação digital.
Mas como aproveitar essa janela de oportunidades? Antes de gozar de projetos bem-sucedidos, é preciso enxergar que os desafios são muitos — tanto para as Gov Techs, quanto para o setor público. Se, por um lado, o tempo de respostas em startups é rápido, por outro, essa agilidade esbarra no ciclo de vendas moroso dos governos. Os recursos reduzidos desses tipos de empresas nem sempre aguentam esperar uma esteira de negociações e exigências tão grandes do poder público. Esse é um dos fatores que diminui o apetite de investidores que miram empresas com probabilidades de crescimento exponencial.
Do lado dos empreendedores e fundadores de startups, é importante que se entenda que, quando se fala em setor público brasileiro, estamos falando de mais de 210 milhões de clientes potenciais. Portanto, a perspectiva de alcance é enorme, não só do ponto de vista financeiro, mas também como propósito de efetivamente mudar a vida das pessoas e gerar impacto social. Como toda boa startup, seus fundadores devem se apaixonar pelo problema e não pela solução - e aqui os problemas são os mais diversos possíveis.
Na perspectiva governamental, há pontos-chave que precisam ser analisados — e cabe aqui uma comparação com o setor privado. No passado, as grandes corporações tinham resistências em abrir sua agenda de fornecedores aos empreendedores. Ao perceberem que eles e suas empresas davam conta do recado, com muito mais agilidade e com um custo reduzido, muitos processos foram remodelados e a cultura de inovação foi agregada, de uma forma ou de outra, ao dia a dia das organizações. Mais do que isso, as corporações começaram a se apropriar de startups que geravam valor para seus negócios e para seus clientes. Percebe-se o mesmo apetite no âmbito do setor público, embora a maturidade ainda não atingiu um nível de fazer negócios com empreendedores digitais. Além das dificuldades em aberturas aos novos negócios com startups, a mentalidade voltada à cultura de inovação de grande parte dos gestores públicos está no começo do jogo, uma vez que a máquina pública não é preparada para inovação, já que inovar significa correr risco. Nesse contexto, os órgãos de controle, que compartilham da mesma mentalidade, precisam avançar rumo à pavimentação desse caminho.
Apesar de ser uma rocha em processo de lapidação, o poder público está direcionando esforços para ser um divisor de águas nessa questão. O marco legal das startups entrou no congresso com a missão de não tratar somente de compras de inovação, mas também fomentar o ecossistema de startups e investidores anjo. Baseado no Projeto de Lei Complementar 249/20, a proposta pretende simplificar a criação de empresas do gênero e estimular o investimento em inovação. Isso já significa um avanço para o mercado como um todo, pois é o pontapé para amparar novos negócios, antes apenas limitados às corporações. A nova lei de licitações também prevê alguns avanços, por meio de novas modalidades de contratações, que ajudarão a impulsionar esse novo mundo de empresas da economia digital e sua relação com o poder público.
Para ajudar ainda mais nesse processo, o setor privado também tem responsabilidades por ser um motor que viabiliza essa estrada para que as GovTechs – e todos os empreendedores digitais trilhem rumo à disponibilização de tecnologia para os cidadãos. As grandes empresas de tecnologia, que hoje têm órgãos governamentais e empresas públicas dentre seus principais clientes, precisam apoiar as GovTechs nessa relação com o Governo, por já terem uma estrada pavimentada, conhecimento e conexões que ajudarão empreendedores a fornecerem suas soluções, em um modelo em que todos os lados ganham.
Se as startups têm o fator de aceleração a seu favor, o setor privado tem conhecimento e musculatura para lidar com governo. Em todo esse quebra-cabeça, a teoria de múltiplos fluxos de John W. Kingdon é um apoio que viabiliza essa jogada estratégica que beneficia a população. Ela conta que o avanço das políticas públicas são produtos da convergência de um momento específico (janela de oportunidades) que é fomentada pela ação de um empreendedor de políticas públicas, motivado por um fluxo de problemas, soluções e forças políticas organizadas. Ou seja: governos, apoiados por inovação de GovTechs e amparados por programas de aceleração e habilitação do setor privado, geram oportunidades e soluções inovadoras para problemas antigos. Diante dessa fórmula mágica, e que pode ser real, fica a reflexão: nesse jogo, onde todos ganham, não importa de que lado você está, mas você tem que jogar.
* Vice-presidente de Setor Público da Oracle Brasil
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