ARTIGO

Não tem volta!

''Insisto em afirmar que as redes sociais são e, ainda por muitos anos, serão o principal território da disputa política. Ilude-se quem acha que o resultado nos EUA e as recentes decisões das plataformas endurecendo contra publicações centradas em discursos de ódio significarão uma redução dessa influência''

Correio Braziliense
postado em 15/01/2021 06:00 / atualizado em 15/01/2021 08:20
 (crédito: Gomez)
(crédito: Gomez)

ORLANDO THOMÉ CORDEIRO
Consultor em estratégia 


“Criar meu web site

Fazer minha homepage
Com quantos gigabytes
Se faz uma jangada e um barco que veleje”

Os versos acima são da música Pela internet, lançada em 1996 pelo genial e visionário Gilberto Gil. De lá para cá, a internet entrou em nossas vidas de forma definitiva e, a partir dos anos 2000, passamos a ouvir falar de Flickr, Orkut, My Space e, claro, Facebook. Essas plataformas posteriormente passaram a ter a companhia de outros gigantes como Twitter, WhatsApp e Telegram e, mais recentemente, o Signal. O primeiro político em escala global a perceber o potencial das redes sociais foi Barack Obama. Sua campanha vitoriosa em 2008 utilizou essas ferramentas com maestria, deixando para trás seus adversários nas prévias e o republicano John McCain.

Porém, é a partir de 2009, com a criação do Movimento 5 Estrelas na Itália, sob a liderança de Beppe Grillo, e de 2010, com a vitória eleitoral de Viktor Orbán, na Hungria, que o mundo tem notícia sobre a utilização das redes como instrumento de criação de grupos políticos focados em bandeiras antissistema e/ou nacional-populistas. A replicação e ampliação dessa estratégia levaram à vitória do Brexit em junho de 2016, de Trump em novembro do mesmo ano e de Bolsonaro em 2018. Indiscutivelmente, eles mudaram a forma das campanhas eleitorais, surpreendendo quem atuava segundo o modelo analógico, em que o foco estava nas ações dos partidos e instituições.

O pulo do gato dos estrategistas desses candidatos foi muito bem abordado no livro Os Engenheiros do Caos, de Giuliano Da Empoli, como abordei no artigo Qual o futuro político do Centro, publicado neste espaço em 6 de março de 2020. Suas bases estavam na compreensão de fatores, tais como: 1) as redes criam a possibilidade das pessoas falarem o que pensam, defendendo suas crenças e valores, sem a necessidade de intermediação de instituições ou de evidências — cada um cria sua verdade; 2) a emoção traduzida em radicalização na defesa desses pontos de vista, permitindo juntar e agrupar pessoas com o mesmo pensamento; 3) estimular os extremos a partir da revolta e da frustração latentes nas sociedades decorrentes, em grande parte, da crise da democracia representativa.

Volto ao tema porque tenho percebido um sentimento, quase uma onda de euforia, após a derrota de Trump, com muita gente considerando que a forma de atuação consagrada nas campanhas supracitadas estaria com os dias contados. Em suas análises, consideram que a vitória de Biden deveu-se, principalmente, à retomada de uma narrativa apoiada na conclamação ao equilíbrio e à racionalidade em busca da construção de consensos. Bem, ouso discordar.

Se olharmos para o cenário pré-pandemia, todas as pesquisas indicavam a vitória de Trump. Portanto, minimizar esse fenômeno na avaliação dos resultados eleitorais seria um equívoco. Entretanto, a grande novidade no ano de 2020 nos EUA foi o surgimento do Black Lives Matter (BLM), que conseguiu, com uma postura intensamente radicalizada, construir um sentimento de união de boa parte da oposição. O movimento BLM ultrapassou a fronteira da denúncia do racismo em si e passou a apontar suas armas para o então ocupante da Casa Branca como o inimigo a ser derrotado. Para isso, fizeram uma gigantesca campanha de estímulo ao voto.

É muito provável que outra candidatura pelo Partido Democrata tivesse menos chance de vitória, mas a experiência política de Biden o fez perceber a necessidade de absorver as bandeiras do BLM como um dos pilares de sua campanha, contribuindo, por exemplo, com a vitória na Geórgia.

Transportando para a realidade brasileira, há algumas pessoas escrevendo que a postura em relação à vacinação, o fim do auxílio emergencial, a crise econômica, o desemprego, levarão a uma quase inevitável derrota de Bolsonaro em 2022. Devagar com o andor, digo eu. A oposição continua a criticar o presidente pelas suas características comportamentais ou seu ideário. Ora, quem votou nele já sabia disso!

Insisto em afirmar que as redes sociais são e, ainda por muitos anos, serão o principal território da disputa política. Ilude-se quem acha que o resultado nos EUA e as recentes decisões das plataformas endurecendo contra publicações centradas em discursos de ódio significarão uma redução dessa influência. Na política, o ser humano move-se pela emoção. Sem compreender isso, adaptando-se à forma de atuação nas redes. Como escreveu Gil: “Eu quero entrar na rede, Pra manter o debate, Juntar via Internet, Um grupo de tietes de Connecticut”. Vai vendo...

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