CRIANÇA

Sociedade humanista é o útero social para a infância

''A criança é a encarnação do amor que vem ao mundo para perpetuar a espécie''

Correio Braziliense
postado em 21/01/2021 06:00 / atualizado em 21/01/2021 08:55
 (crédito: Gomez)
(crédito: Gomez)

DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, membro titular da Academia Brasileira de Pediatria, presidente do Global Pediatric Education Consortium (Gpec) 

 

A criança é a encarnação do amor que vem ao mundo para perpetuar a espécie. Sua alma é a mais próxima da fonte de vida humana. Seu corpo e seu organismo são estruturados na etapa intrauterina, em conformidade com as características genéticas que constituem o seu chamado genoma. É quando se inicia a sua exposição, via placentária, aos bons e maus estímulos do meio ambiente. Exemplo são os fatores ambientais estressantes que afetam a maioria das mulheres no exercício de suas nobres funções, induzindo-as a produzir substâncias como cortisol e adrenalina, que podem, por meio da placenta, atingir o organismo do feto causando distúrbios prejudiciais à sua formação normal.

A gravidez é uma fase bem complexa da criação de um novo ser humano. Requer assistência pré-natal não apenas médica, mas, também, psicossocial e educativa destinada às figuras materna e paterna orientando-as a respeito da relevância do seu papel para o crescimento e o desenvolvimento saudáveis do feto durante a gestação e após o parto.

Os países que investem nessa faixa etária mostram o potencial construtivo com o qual as crianças chegam ao mundo. Infelizmente, a essência dos cuidados com a qualidade humana das novas gerações não é reconhecida em nosso país. Os governos dão pouco valor às comprovações científicas que priorizam saúde e educação na infância. Tamanho desleixo para com o futuro cidadão não ocorre apenas durante sua vida intrauterina, nem somente no Brasil. O atraso da sociedade precisa ser revertido.

O psicanalista espanhol Ajuriaguerra, que atuava na França, publicou revisão histórica sobre o assunto. Deixa claro que, desde os mais remotos tempos, a infância foi a maior vítima da violência dos adultos. Destaca os períodos marcados pelo desprezo, desafeto e agressão. São os seguintes: 1 — Infanticida (da antiguidade ao século IV). É a fase histórica das mais cruéis. Foi quando o cristianismo opôs-se ao infanticídio como ato criminoso e pecaminoso; 2 — Abandono (entre os séculos 4 e 13). Parte dos infanticídios foi substituída pelo abandono, ato que culmina com a morte impiedosa das vítimas; 3 — Ambivalente (entre os séculos 14 e 16). Os dois crimes citados prevaleceram como desprezo para com as novas gerações; 4 — Intrusivo (século 18). Resultou de iniciativas voltadas para a reversão de tamanha criminalidade; 5 — Social (entre os séculos 19 e 20). Países comprometidos com o humanismo defendem a proteção da criança e o investimento em sua saúde e educação; 6 — Ajuda (do século 20 em diante). É o atual período em que poderá crescer a valorização do mérito dessa faixa etária.

O tempo passa, mas a violência contra a criança ainda persiste mundo afora. Crimes como infanticídio, abandono, abuso sexual, aborto, trabalho infantil, entre outros, são hediondas tragédias praticadas contra muitas criaturas recém-chegadas ao nosso mundo e tratadas como meras miniaturas do adulto. Sofrem a imposição de atos e fatos que nada têm a ver com a sua essência humana.

Não faltam provas de que, durante os seis primeiros anos de vida, definidos como primeira infância, o potencial de aprendizagem é bem maior do que o do adulto. É a fase em que mais cresce e se diferencia o cérebro do cidadão na sua vida pós-natal.

Uma criança de dois a três anos de idade é capaz de se comunicar por meio do idioma primitivo, que passa a conhecer e usar por conta própria. Ouve os fonemas, identifica o cenário em que se encontra, observa os gestos dos circunstantes e a dinâmica ambiental. Seu cérebro faz a devida associação interpretativa por meio da qual o infante passa a entender cada vez melhor o que ouve e iniciar a comunicação verbal. É o potencial cognitivo a ser estimulado, na faixa etária correspondente, por meio de incentivos educacionais que assegurem às novas gerações o capital cognitivo que poderão alcançar. Torna-se, assim, clara a dimensão humana da infância. Afeto, aconchego, ternura, paz e amor são ingredientes essenciais ao seu crescimento e desenvolvimento, desde a vida intrauterina.

Países da Ásia, do Pacífico, estão investindo em projetos de proteção, estímulo afetivo e educacional da infância para aumentar o capital cognitivo entendido como meta diferente e superior à do capital financeiro. Configura-se, pois, o horizonte do citado período de ajuda. Iniciativas desse teor reduzirão a violência contra criança e promoverão o progresso que as novas gerações merecem. Uma sociedade humana dedicada ao acolhimento educativo da infância será um verdadeiro útero social.

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