Questão de caráter

''Por que a Justiça não condena essas pessoas a passarem alguns dias como voluntárias em unidade de terapia intensiva para pacientes com a covid-19? Talvez seja uma forma de abrir-lhes os olhos para a torpeza de seu ato. Talvez tal punição seja inócua. Pois, tudo é apenas uma questão de caráter''

Rodrigo Craveiro
postado em 27/01/2021 06:00 / atualizado em 27/01/2021 08:56

Sim, é isso mesmo, caro leitor. As inúmeras notícias sobre autoridades e cidadãos comuns burlando a fila da vacinação contra a covid-19 para imunizar a si mesmo ou familiares envolvem, sobretudo, ausência absoluta de caráter. Pires do Rio (GO): o secretário da Saúde transforma a própria esposa em prioritária, enquanto outros grupos deveriam receber o imunizante antes.

Serra do Navio (AP): depois de criticar a vacina sucessivas vezes, o também secretário da Saúde é imunizado sem que fosse sua vez. Alto Alegre (RR): digital influencer recebe a primeira dose por ser namorada do prefeito, que a nomeou secretária adjunta de Saúde do município. Manaus (AM): duas médicas recém-formadas, de 24 anos, filhas de um rico empresário, são vacinadas no primeiro dia de campanha. Itabi (SE): ainda que o município tivesse recebido somente 31 doses, o prefeito é imunizado e diz que pretendia estimular a população a fazer o mesmo. Candiba (BA): depois de ser beneficiado com a vacina, o também prefeito divulga vídeo em que pede desculpas e afirma que o objetivo foi dar o melhor de si ao povo.

Os exemplos se repetem por todo o país. O famoso e permissivo “jeitinho brasileiro” ganha contornos dantescos. Quem se sente imbuído de privilégios para ser imunizado com antecedência, ainda que não faça parte dos grupos prioritários, despreza e vilipendia o direito do próximo. Não somente isso. Assume o risco de outro cidadão ser infectado com o coronavírus e acabar intubado ou morto, pelo fato de o acesso à imunização lhe ter sido roubado. É quase um homicídio culposo. A malandragem, a malemolência, o tal “jeitinho brasileiro” superam a questão ética ou moral e abarcam a seara criminal.


Fico imaginando como alguém que se julga superior ao outro para receber tal regalia coloca a cabeça sobre o travesseiro, à noite, e consegue ter o chamado “sono dos justos”? Há quem diga que os exemplos citados acima configuram uma versão pandêmica do tóxico “sabe com quem está falando?”. Autoridades que usam o poder que lhes é emprestado para se impor. Não passam de seres mesquinhos e arrogantes, indiferentes ao próximo. Uma sugestão: por que a Justiça não condena essas pessoas a passarem alguns dias como voluntárias em unidade de terapia intensiva para pacientes com a covid-19? Talvez seja uma forma de abrir-lhes os olhos para a torpeza de seu ato. Talvez tal punição seja inócua. Pois, tudo é apenas uma questão de caráter. 

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