ARTIGO

Não tem volta!

''Insisto em afirmar que as redes sociais são e, ainda por muitos anos, serão o principal território da disputa política. Ilude-se quem acha que o resultado nos EUA e as recentes decisões das plataformas endurecendo contra publicações centradas em discursos de ódio significarão uma redução dessa influência''

ORLANDO THOMÉ CORDEIRO
Consultor em estratégia 


“Criar meu web site

Fazer minha homepage
Com quantos gigabytes
Se faz uma jangada e um barco que veleje”

Os versos acima são da música Pela internet, lançada em 1996 pelo genial e visionário Gilberto Gil. De lá para cá, a internet entrou em nossas vidas de forma definitiva e, a partir dos anos 2000, passamos a ouvir falar de Flickr, Orkut, My Space e, claro, Facebook. Essas plataformas posteriormente passaram a ter a companhia de outros gigantes como Twitter, WhatsApp e Telegram e, mais recentemente, o Signal. O primeiro político em escala global a perceber o potencial das redes sociais foi Barack Obama. Sua campanha vitoriosa em 2008 utilizou essas ferramentas com maestria, deixando para trás seus adversários nas prévias e o republicano John McCain.

Porém, é a partir de 2009, com a criação do Movimento 5 Estrelas na Itália, sob a liderança de Beppe Grillo, e de 2010, com a vitória eleitoral de Viktor Orbán, na Hungria, que o mundo tem notícia sobre a utilização das redes como instrumento de criação de grupos políticos focados em bandeiras antissistema e/ou nacional-populistas. A replicação e ampliação dessa estratégia levaram à vitória do Brexit em junho de 2016, de Trump em novembro do mesmo ano e de Bolsonaro em 2018. Indiscutivelmente, eles mudaram a forma das campanhas eleitorais, surpreendendo quem atuava segundo o modelo analógico, em que o foco estava nas ações dos partidos e instituições.

O pulo do gato dos estrategistas desses candidatos foi muito bem abordado no livro Os Engenheiros do Caos, de Giuliano Da Empoli, como abordei no artigo Qual o futuro político do Centro, publicado neste espaço em 6 de março de 2020. Suas bases estavam na compreensão de fatores, tais como: 1) as redes criam a possibilidade das pessoas falarem o que pensam, defendendo suas crenças e valores, sem a necessidade de intermediação de instituições ou de evidências — cada um cria sua verdade; 2) a emoção traduzida em radicalização na defesa desses pontos de vista, permitindo juntar e agrupar pessoas com o mesmo pensamento; 3) estimular os extremos a partir da revolta e da frustração latentes nas sociedades decorrentes, em grande parte, da crise da democracia representativa.

Volto ao tema porque tenho percebido um sentimento, quase uma onda de euforia, após a derrota de Trump, com muita gente considerando que a forma de atuação consagrada nas campanhas supracitadas estaria com os dias contados. Em suas análises, consideram que a vitória de Biden deveu-se, principalmente, à retomada de uma narrativa apoiada na conclamação ao equilíbrio e à racionalidade em busca da construção de consensos. Bem, ouso discordar.

Se olharmos para o cenário pré-pandemia, todas as pesquisas indicavam a vitória de Trump. Portanto, minimizar esse fenômeno na avaliação dos resultados eleitorais seria um equívoco. Entretanto, a grande novidade no ano de 2020 nos EUA foi o surgimento do Black Lives Matter (BLM), que conseguiu, com uma postura intensamente radicalizada, construir um sentimento de união de boa parte da oposição. O movimento BLM ultrapassou a fronteira da denúncia do racismo em si e passou a apontar suas armas para o então ocupante da Casa Branca como o inimigo a ser derrotado. Para isso, fizeram uma gigantesca campanha de estímulo ao voto.

É muito provável que outra candidatura pelo Partido Democrata tivesse menos chance de vitória, mas a experiência política de Biden o fez perceber a necessidade de absorver as bandeiras do BLM como um dos pilares de sua campanha, contribuindo, por exemplo, com a vitória na Geórgia.

Transportando para a realidade brasileira, há algumas pessoas escrevendo que a postura em relação à vacinação, o fim do auxílio emergencial, a crise econômica, o desemprego, levarão a uma quase inevitável derrota de Bolsonaro em 2022. Devagar com o andor, digo eu. A oposição continua a criticar o presidente pelas suas características comportamentais ou seu ideário. Ora, quem votou nele já sabia disso!

Insisto em afirmar que as redes sociais são e, ainda por muitos anos, serão o principal território da disputa política. Ilude-se quem acha que o resultado nos EUA e as recentes decisões das plataformas endurecendo contra publicações centradas em discursos de ódio significarão uma redução dessa influência. Na política, o ser humano move-se pela emoção. Sem compreender isso, adaptando-se à forma de atuação nas redes. Como escreveu Gil: “Eu quero entrar na rede, Pra manter o debate, Juntar via Internet, Um grupo de tietes de Connecticut”. Vai vendo...