Império dos Sentidos

» Alfredo Attié Filósofo
Jurista e Escritor
é Titular da Cadeira San Tiago Dantas da Academia Paulista de Direito
que preside
e exerce a função de desembargador
em São Paulo
postado em 16/02/2021 21:21

A invasão de bárbaros, paramentados para um espetáculo de rede social, marcou o início de 2021. Talvez seja a repetição da história do império que cai em decorrência de uma ação guerreira, que compõe nossa imaginação de que vários povos teriam sido responsáveis pela queda de Roma. Imaginamos esses bárbaros com cabelos longos e corpos cobertos por peles de animais, longos chifres ornando elmos, gritando e atacando com armas rústicas.
Não é preciso esforço para remeter essa imagem à dos invasores do Capitólio, centro simbólico da nova Roma, herdeira da Antiguidade clássica latina, dotada de virtudes republicanas louvadas por Cícero e da capacidade guerreira de Júlio César. Como Roma, o Distrito de Columbia foi atacado mais de uma vez desde a invasão exitosa britânica de 1814. Muitos ataques decorreram de protesto individual ou coletivo pelo alegado cometimento de injustiças.
O ataque por estrangeiros ao Pentágono, em 2001 resultou na Guerra ao Terror, acirrando nacionalismos, fanatismos religiosos, suprimindo garantias e complicando o deslocamento dos povos pelo mundo. Esses terroristas se diziam falsamente herdeiros de outro império extinto, nascido na Idade Média. Mas essa imagem bastou para a construção da ideia do inimigo, cara ao pensamento autoritário: diferente, externo e comprometido com fanatismo que lhe dava contornos de unidade. A reação conservou a imagem forjada da nação única, defendendo-se por meio da retaliação ao território do antagonista, com a retomada da potência guerreira.
Os Estads Unidos (EUA) se soergueram após tantos ataques, assassinato de presidentes e líderes políticos, por meio de reformas políticas construtivas ou restritivas. Essa invasão recente tem, contudo, novo significado e faz duvidar da eficácia da reação americana.
Os bárbaros do Capitólio não eram estrangeiros, nem fiéis de divindade estranha. Compatriotas, como os oponentes da Guerra Civil do século 19 a quem se concedeu, após a rendição, o tratamento de cidadãos. Aos escravos, porém, os EUA não ofereceram a mesma oportunidade. Libertos formalmente, ainda lutariam muito por cidadania e respeito. Em 2020, o mundo observou o quanto os afro-americanos permanecem excluídos do pacto republicano firmado em 1776. A verdade autoevidente da igualdade ainda não serve a todos. Os protestos pela morte de George Floyd não se fizeram invasão, mas caminhadas pelos espaços da cidadania de pessoas de todos os credos e etnias, pelo respeito a vidas humanas perdidas e ameaçadas pela violência simbólica e real do preconceito.
Mulheres e homens que invadiram o Capitólio tinham as feições dos WASP e empunhavam armas de fogo, o que uma cultura perigosa e destrutiva ainda considera um direito. Contra esses, a reação tem sido pífia, se comparada à repressão de outros movimentos que, ao contrário dessa invasão, fizeram-se em sua maioria pacíficos e buscavam apenas garantir ou adquirir direitos.
A invasão bárbara de 2021 foi violenta e sem justificativa. Um movimento de massa que apenas reivindica destruir o espaço da democracia e nesse espaço público fazer imperar a vontade dos poucos que só aceitam sua própria imagem e rejeitam a presença de outros. Seu inconformismo com o processo eleitoral era irracional, por motivo tramado nas redes sociais, inclusive em contas do próprio candidato perdedor. Em gestos de agressão gratuita, proporcionaram espetáculo deprimente, por meio de selfies que expunham suas intenções vazias mas temerárias.
Compunham o império dos sentidos. Sua pele ocupava o lugar de seu cérebro, e sua autoimagem, o da da existência. O universo é sua vontade e sua representação. Não hesitam em inverter tudo o que possui lugar e voz. Não há verdade fora do pouco que sabem ou querem conhecer. Conhecimento que garantem reprimindo a si e a todos. Univocidade, comunicação de mão única em rua estreita e murada.
Não será o Oriente, próximo ou distante, a encaminhar essa nova queda. A invasão bárbara que decretou o fim desse Império foi perpetrada por seus próprios romanos. Gritaram e apontaram as armas contra si mesmos, disseram “não” à democracia, findaram com tudo que seus concidadãos e concidadãs construíram ao longo do tempo e pelo que lutam ainda hoje. Nessa nova ordem de insegurança, somos ameaçados por esses bárbaros. Não querem destruir fronteiras, como os bárbaros da Antiguidade, mas construir muros e nos expulsar do espaço que consideram apenas seu, zelosos de seus smartphones. O Congresso americano saberá punir e afastar sua ameaça?

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