POLÍTICA

Os cupins da República

''Uma nova versão do mensalão parece estar em curso. A Operação Lava-Jato ficou para trás e não se vê possibilidade de ser revigorada''

Correio Braziliense
postado em 19/02/2021 06:00 / atualizado em 19/02/2021 08:32
 (crédito: Gomez)
(crédito: Gomez)

ALMIR PAZZIANOTTO PINTO
Advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho 

 

O tropel em torno da renovação das direções da Câmara dos Deputados e do Senado resultou em soma zero. A decadência que se registra em ambas as casas do Poder Legislativo é de tal modo acentuada, que a mudança das respectivas mesas diretoras, quaisquer que tenham sido os resultados, dará rigorosamente em nada.

Rejeito o rótulo de pessimista. Procuro me deter na análise dos fatos. Já o dizia Friedrich Hayek, em livro da década de 1980, que “o problema do nosso tempo, a exigir grande atenção dos que atribuem a máxima urgência à preservação das instituições democráticas, consiste em coibir o processo de compra de votos” (O Direito, Legislação e Liberdade, vol. III, pág. 30).

A pior das formas de compra de votos não acontece nos municípios, para eleição do vereador e prefeito. Corrupção municipal existe, mas de reduzidas proporções, diante do que se observa nos altos degraus da pirâmide política. Ocorre, sobretudo, nos parlamentos convertidos em balcões de negócios, quando o detentor da chave do Tesouro delibera interferir em eleições ou votações mediante distribuição de verbas e empregos, satisfazendo exigências de deputados e senadores.

A falta de probidade na administração integra o rol dos crimes de responsabilidade previstos no artigo 85, V, da Constituição. Pode ser cometido às escondidas, nos subsolos palacianos, ou à vista de todos, em palácios e parlamentos. É esta, talvez, a modalidade mais comum, segura e difundida, conhecida como “toma lá, dá cá”, ou “é dando que se recebe”.

Praticada no atacado ou no varejo, a falta de probidade na administração se espalhou. O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, definiu a corrupção como o cupim da República. Disse S. Exa., citando discurso de Ulysses Guimarães em defesa da promulgação da Constituição de 1988: “A República, suja pela corrupção impune, tomba nas mãos de demagogos que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam”.

Corrupção, injustiça fiscal, fraudes em contas públicas, peculato, estelionato, especulação, tráfico de influência, advocacia administrativa, superfaturamento, acumulação de cargos, subornos, cabides de emprego, funcionários fantasmas, lentidão burocrática, nepotismo, políticos nefastos, produtos de baixa qualidade e até golpes de marketing. A relação que omite a “rachadinha” não é de minha autoria. Pertence a João Ubaldo Ribeiro. Pode ser lida na apresentação feita ao livro A Arte de Furtar, publicado em Portugal durante o reinado de Dom João IV (1640-1656), a quem o anônimo autor dedicou, mas cuja autoria foi enganosamente atribuída ao padre Antônio Vieira (Ed. Nova Fronteira, RJ. 1992).

A corrupção, em todas as modalidades e nuances, é prática antiga. A nossa teria raízes em Portugal. A Arte de Furtar “não é apenas uma joia do português castiço ou um documento filológico. É, sobretudo, um depoimento dos costumes portugueses do século XVII”. A frase é do ex-presidente da República Afonso Pena Júnior em A Arte de Furtar e sua autoria (José Olympio Editora, RJ, 1946). O objetivo seria ensinar o rei como se defender dos que furtam com unhas temidas, disfarçadas, maliciosas, descuidadas, sábias, ignorantes, agudas, tímidas, singelas, dobradas, mimosas, domésticas, toleradas, alugadas, políticas, amorosas. São 70 textos redigidos em português arcaico, merecedores de atenção pela atualidade de que se revestem.

É espantoso que a corrupção, na forma da compra de votos, seja feita às claras, sem reservas. Os grandes jornais diários a divulgam aos quatro ventos. Em plena pandemia, quando são negados recursos necessários à aquisição e aplicação de vacinas ou compra de respiradores artificiais, o Palácio do Planalto interfere nas eleições da Câmara dos Deputados e do Senado, liberando R$ 3 bilhões para negociar os votos de parlamentares venais aos seus candidatos.

O presidente Jair Bolsonaro ostentou, como bandeira de campanha, o combate à corrupção. O eleitorado acreditou que dizia a verdade. Passados dois anos, entretanto, a credibilidade não é a mesma e a popularidade despencou. O cupinzeiro brasiliense demonstra estar satisfeito e se sentir à vontade.

Uma nova versão do mensalão parece estar em curso. A Operação Lava-Jato ficou para trás e não se vê possibilidade de ser revigorada. Daí a incontida e santa indignação do ministro Edson Fachin, que se referiu ao país atacado pela praga dos cupins. Em Roma, tudo está à venda, dizia o senador romano Caio Salústio Crispo (86 a.C.- 35 a.C.). A se acreditar nas notícias, em situação semelhante se encontra o Brasil.

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