“Tu sabes, conheces melhor do que eu a velha história. Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada (...)”. Esses inquietantes versos pertencem ao longo poema No caminho, com Maiakóvski, do poeta e artista plástico fluminense Eduardo Alves da Costa, radicado em São Paulo, que fará 85 anos em 6 de março. Foram compostos em 1968, às vésperas do Ato Institucional nº 5 (AI-5) — o mais duro instrumento do regime militar iniciado em 1964 —, e se transformou em bandeira de resistência, inclusive de movimentos estudantis. E nos anos 1980 esses versos também foram estampados em camisetas da campanha das Diretas Já.
Mais de meio século depois, esse poema permanece atualíssimo por causa de ameaças à democracia. Como se viu recentemente nos Estados Unidos (EUA), onde se acreditava que era inabalável, até os conturbados últimos dias da era de Donald Trump na Casa Branca. E é possível também fazer analogia dos versos que arrancam a nossa voz da garganta com o desatino do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), preso pela Polícia Federal depois de fazer graves ameaças aos ministros do Supremo Tribunal Federal. Suas palavras, ultrajantes, não podem passar incólumes.
Usando um velho clichê, é preciso cortar o mal pela raiz, neste caso, o extremismo do parlamentar e de outros radicais. Se as instituições se calarem, podem ganhar força os ataques à democracia que vêm sendo registrados em diversos países nos últimos anos. Em situações extremas, vale lembrar de momentos decisivos da história do século 20, com exemplos gritantes de como a omissão e a indiferença de governos e sociedades custaram a liberdade. O maior de todos é o nazifascismo que emergiu na Alemanha a partir de 1918, na pele de um obscuro cabo da Primeira Guerra Mundial chamado Adolf Hitler. Tratado com galhofa, ele moveu multidões e o trágico resultado da sua histeria é muito bem conhecido.
Sobre essa triste página da história da humanidade foi construída uma obra-prima do cinema chamada O ovo da serpente, lançada pelo cineasta sueco Ingmar Bergman (1918-2007), em 1977, com David Carradine e Liv Ullmann. A história se passa em Berlim, em 1923. O protagonista é Abel Rosenberg, trapezista judeu desempregado que vai a Berlim tentar descobrir porque seu irmão, Max, se suicidou. Ele, então, encontra Manuela, sua cunhada, que trabalha como corista numa boate e, juntos, sobrevivem com grandes dificuldades sob a crescente recessão econômica que assola a Alemanha após a Primeira Guerra. Sem compreender com clareza as profundas transformações políticas em andamento, eles vão trabalhar numa clínica e descobrem uma série de experimentos com seres humanos em meio à ascensão nazista. O sistema político falido, a fome, a miséria, a hiperinflação e a violência estouram, um ambiente propício para a incubação do “ovo da serpente” do nazismo, com o surgimento de falsos salvadores egocêntricos, racistas e preconizadores de discurso de ódio. Ninguém fez nada, e o ovo gerou a serpente do nazismo.
Exagero fazer paralelo com os dias atuais? Não necessariamente. A tolerância com o discurso de extremistas como o deputado e outros que vêm estimulando atos antidemocráticos precisa ser coibida, porque acaba servindo de incentivo para outros. O totalitarismo tem várias caras e vários nomes. Por isso, é preciso que o responsável pelas ameaças receba punição à altura de seu desvario. E que o caso seja logo superado, para que o Congresso possa voltar a se dedicar aos seus temas prioritários, elencados pelos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e Câmara dos Deputados, Arthur Lira: a aprovação de um novo auxílio emergencial para os que perderam a renda com o impacto do coronavírus e o avanço com as reformas, tão necessárias para que o Brasil volte a trilhar o caminho do desenvolvimento. Não há tempo para se perder com quem não respeita a democracia.
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