Ações civis públicas sem fronteiras

''Qualquer visão diversa, que embarque no delirante argumento das particularidades territoriais, terá apenas um efeito: deixar a nossa justiça em pedaços''

Correio Braziliense
postado em 22/02/2021 06:00 / atualizado em 22/02/2021 09:03

» MARILENA LAZZARINI
Presidente do conselho diretor do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec)


» VIDAL SERRANO NUNES JUNIOR
Procurador de Justiça, professor da PUC-SP e integrante do Conselho Diretor do Idec

 

Está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF) um caso decisivo para o futuro da Justiça no Brasil: o recurso que discute a abrangência territorial das sentenças proferidas em Ações Civis Públicas (ACP) está na pauta de votação no próximo dia 25. O tema foi levado à Corte por um grupo de grandes instituições financeiras que respondem pela aplicação de cláusulas abusivas em contratos de crédito imobiliário na década de 1990. As milhares de pessoas afetadas por essas práticas são de todo o país, mas os bancos querem que os resultados de uma eventual sentença condenatória se apliquem apenas aos que vivem no estado de São Paulo, onde o processo foi iniciado. Se forem vitoriosas em seu argumento, conseguirão que essa aberração seja a regra no sistema de tutela de direitos coletivos.

Esse sistema, do qual a Ação Civil Pública é o principal instrumento, foi criado em 1985 para garantir direitos iguais a grandes grupos afetados pelos mesmos problemas ou violações. É o caso, por exemplo, de milhões de pessoas expostas por um grande vazamento de dados, como estamos vendo neste momento. Ou de populações de diversos estados sofrendo as consequências de um grande crime ambiental. Nos dois casos, temos situações que afetam enorme quantidade de pessoas de modo generalizado, não importa onde vivam. A ACP existe justamente para garantir que, com apenas um processo, todas elas alcancem a mesma Justiça.

Os bancos, para sustentar seu argumento, recorrem ao artigo 16 da Lei de Ações Civis Públicas, que foi modificado de maneira controversa em 1997, em pleno debate sobre a legalidade das privatizações que ocorreram naquele período. A comunidade jurídica é uníssona ao apontar os problemas técnicos e a inconstitucionalidade dessa nova redação, e o próprio STJ (Superior Tribunal de Justiça) tem uma posição inequívoca no sentido de aplicar as sentenças das ACPs a todo o território nacional.

Essa querela dos bancos é perigosa e, se prevalecer, provocará um dano irreversível à segurança jurídica do país e à sustentabilidade operacional do Judiciário. O sistema atual é importante porque aglutina demandas idênticas em um só caso, alcançando todas as pessoas que se enquadrem na mesma situação jurídica. Se for desmontado, proliferarão as demandas individuais e coletivas idênticas, com potencial de levar os tribunais — já abarrotados — ao colapso total.

Outro problema ainda maior será o aprofundamento das desigualdades do país, tendo em vista que os direitos coletivos ficarão confinados às populações que tenham acesso a recursos — privados e institucionais — para acionar a Justiça. Ou seja, apenas aqueles com capacidade para levar suas demandas aos tribunais seriam alcançados pelas sentenças. Esse é um traço particularmente repulsivo do sistema de tutela coletiva que os bancos projetam.

Esperamos que os ministros do STF cumpram seu papel contramajoritário, rejeitando essa pretensão do sistema financeiro e, sobretudo, preservando o direito constitucional à Justiça de forma igualitária. A pandemia exacerbou o fato de que há problemas que nos atingem por inteiro e que só podem ser remediados de maneira universal. O sistema de tutela coletiva existe para nos proteger justamente nestas situações. Qualquer visão diversa, que embarque no delirante argumento das particularidades territoriais, terá apenas um efeito: deixar a nossa justiça em pedaços.

 

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