ANDRÉ MORAES NICOLA
Médico, pesquisador e professor da Faculdade de Medicina, Universidade de Brasília (UnB)
"Eu tive covid-19, usei cloroquina e melhorei. Esse remédio realmente funciona. Vai me dizer que foi só coincidência?” Aposto que você, leitor deste texto, também já ouviu ou até mesmo falou isso ao longo dessa pandemia. Até mesmo de colegas médicos afirmaram categoricamente que o “tratamento precoce” com esses remédios do “kit covid”, como cloroquina, ivermectina ou nitazoxanida, funciona com base em sua prática tratando centenas de pessoas. O que a experiência dessas pessoas nos no permite concluir sobre o tratamento de pessoas infectadas com o coronavírus? Praticamente nada!
Essa é uma daquelas coisas meio insanas da medicina, uma ciência cheia de coisas que, à primeira vista, parecem estranhas. Lembre-se de que a maioria das pessoas infectadas com o coronavírus Sars-CoV-2 não desenvolve doença, e a maioria daqueles que a desenvolvem não morre. Isso ocorre porque nosso sistema imunitário lida com a infecção de forma supereficiente. Se uma pessoa com covid-19 toma um remédio para a doença, será que ela melhorou “por causa “ do remédio ou “apesar” do remédio, uma vez que ela se curaria espontaneamente? Se um médico prescreve esse remédio para 100 pessoas e todos melhoram da covid-19, será que a melhora foi consequência do uso do remédio ou será que todas essas pessoas teriam se curado sozinhas sem remédio algum?
Ao longo dos séculos, profissionais de saúde e cientistas aperfeiçoaram uma ferramenta que consegue responder a essas perguntas: o “ensaio clínico duplo-cego, controlado e randomizado”. O estudo é controlado, o que significa que alguns participantes voluntários recebem o remédio cuja eficácia se quer testar (grupo tratado), enquanto outros não recebem o remédio (grupo controle). Se, ao final do estudo, o número de pessoas que ficou doente ou morreu no grupo controle for significativamente maior do que no grupo tratado, o remédio funciona. Caso não haja diferença entre os grupos, o remédio é ineficaz.
Além disso, o ensaio clínico pode ser duplo-cego. Quando os voluntários estão cegos, não sabem se o comprimido que estão tomando é o remédio ou se é uma substância inócua como farinha. Isso diminui o chamado efeito placebo, que faz pessoas se sentirem melhor porque elas acreditam no remédio ou faz pessoas que duvidam da eficácia do remédio deixarem de relatar uma melhora. Quando os pesquisadores estão cegos, eles também não sabem se cada um dos voluntários recebeu comprimidos de remédio ou farinha. Isso impede que eles avaliem de forma diferente as pessoas dos grupos tratado e controle, uma vez que cientistas também são humanos e têm medo da covid-19 e esperança de achar uma cura. O cegamento dos pesquisadores também impede que eles avaliem os pacientes de forma diferente por motivos escusos, por interesses financeiros ou políticos no uso do remédio.
Por fim, para esclarecer se um remédio funciona ou não é crucial que o ensaio clínico seja randomizado. Imagine um estudo em que os participantes com covid-19 do grupo controle fossem idosos, enquanto os voluntários do grupo tratado fossem adolescentes. É claro que qualquer remédio nesse caso pareceria ser supereficaz, porque as pessoas do grupo controle tinham um risco muito maior de morrer de covid-19 no começo do estudo. Em um estudo randomizado, os voluntários são sorteados para o grupo controle ou tratado. Essa distribuição ao acaso nos dois grupos garante que os dois grupos sejam comparáveis.
Veja que a observação de uma pessoa que tomou cloroquina quando teve a doença e se curou é relativa a uma única pessoa; sem comparação com quem não tomou o remédio não dá para concluir nada. Mesmo no caso de médicos que relatam suas experiências com centenas de pessoas, a ausência de controles, cegamento e randomização, significa que há tanta confusão — os chamados vieses —que tirar qualquer conclusão sobre a eficácia do remédio no tratamento da covid-19 é falho ou mesmo desonesto.
Todos os detalhes que fazem dos ensaios clínicos a melhor fonte de informação médica são resultado de inúmeras pessoas quebrando a cabeça ao longo de séculos para encontrar as melhores formas de testar se um tratamento funciona ou não. Apesar de caros e demorados, estudos como esses são parte importante dos avanços que transformaram a medicina de crendices e superstições em uma ciência, e em alguns séculos mudaram o mundo de um lugar em que metade das pessoas morriam na infância e poucos passavam dos 25 anos para o mundo em que vivemos hoje. E são a melhor chance que temos para sair dessa pandemia.
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.