ARTIGO

O direito da raça negra em permanecer no planeta

Correio Braziliense
postado em 27/02/2021 06:00
 (crédito: Gomez)
(crédito: Gomez)

Por LOMA PEREIRA - Cantora gaúcha e ativista cultural

Sou Loma Pereira, cantora negra que deu start na carreira em 1970, um período difícil para mulheres ainda mais negras, entretanto, com garra e perseverança conquistei o reconhecimento do público gaúcho. De gosto musical eclético, fui a única intérprete negra a se lançar no mercado de trabalho dos festivais de música nativista no estado.

Quero falar primeiro de minha infância e como cheguei aonde estou. Órfã de pai, um belo negro pernambucano, telegrafista da Marinha Mercante, e de mãe descendente de açorianos, doméstica, criada entre nove irmãos numa família em que mulher não podia estudar. Aos 14 anos, dona Lourdes, tão logo menstruou, casou-se com alguém, 16 anos mais velho. Dona de um temperamento que não engolia sapo, valente e decidida, dois anos depois fugia para a capital.

Nos idos de 1950 e 1960, empregada doméstica, fosse branca ou negra, era tratada como escória. Davam-lhes comida, parcas moedas e carga horária das sete da manhã às 11 da noite. Dormir no emprego era obrigatório e se tivessem filhos, o problema era delas. Aquelas “senhoras distintas”, psicologicamente também maltratadas, projetavam suas neuroses na criadagem — o que minha mãe também não engolia.

Esgotada de pular de casa em casa, embarcou num navio com destino a Santos. Na viagem conheceu meu pai, apaixonaram-se e o que era para ser Santos virou Recife. Tornaram-se companheiros e, assim, nasci na Veneza brasileira. Em meses, meu pai morreu e minha mãe, temerosa de que os sogros me tomassem dela, retornou a Porto Alegre. Dessa vez, com uma filha negra sob zelosas asas brancas.

Renegada pela família, retornou ao trabalho que lhe restava e naquele ambiente adoentado eu cresci. Naquele troca-troca de emprego, assiduidade e permanência na escola eram luta campal. Embora a fome e a solidão me castigassem, na rua, sobreviver consumia a maior parte dos meus dias. Sentia a falta da minha mãe, da escola e da convivência com crianças da minha idade. Intuí que chorar aliviava. A gana de viver e ver meus sonhos realizados ia se fortalecendo na certeza de existir ambientes mais saudáveis para se viver.

Recordava sempre minha mãe a me dizer: “Nós podemos muito, minha filha! Sejam lá as circunstâncias que se apresentem!” Tornei-me valente também. E sonhadora! Gostava de cantar, sentia que a música me fazia feliz! Uma vez em Santos, minha mãe me levou para assistir artistas do rádio famosos na época. Tinha seis anos e foi maravilhoso ouvir Cauby Peixoto, Dalva de Oliveira e Ângela Maria bem de pertinho. Era um prazer seguir a banda marcial nos festejos da Igreja de Mont Serrat. Também curtia pelos autofalantes das ruas as marchinhas carnavalescas.

Em Porto Alegre, minha mãe empregou-se como servente na Escola Jesus de Nazaré, onde estudavam crianças do Lar São Domingos. Aos 12 anos, vivia o sonho de permanecer na escola. Tendo aulas de música com a professora Cecília, fui selecionada pro coral. Que deleite ouvir a harmonia que resultava dos arranjos vocais. Experimentei aquela troca de energia, diga-se de passagem, bálsamo às feridas da alma.

O resultado do trabalho foi tão evidente que logo o coral de crianças era o mais requisitado da cidade. O maestro Pablo Komlós, regente da Orquestra Sinfônica, vendo-nos num programa infantil da TV Piratini, convidou-nos para interpretar a ária Os Palhaços da ópera Aida, encenada todo ano. Como num conto de fadas, a decisão de ser cantora brotou naquele espetáculo. Sabia que seria uma jornada solitária. Ano seguinte, integrava o cast de artistas mirins do programa Vovô Bicudinho na TV Gaúcha, participando de apresentações de Natal, dessa vez no Teatro Leopoldina. Sem toca-disco, precisava escolher repertório, então um amigo querido da Rádio Gaúcha que me conheceu tietando artistas da Jovem Guarda nos bastidores do GR SHOW (Glênio Reis), ofereceu-me a discoteca da rádio. Segui em frente por trilhas facilitadas ou íngremes, encarando preconceito de cor, competitividade absurda, mas ciente do meu valor.

O reconhecimento do público, de colegas e produtores aditivou meu talento a quem sou grata por me manterem em cena há 48 anos. Embora o preconceito tenha erguido barreiras nessa trajetória, eu as transpus, derrubei ou contornei. Conscientizei a mim e ao público sobre nossas raízes, propaguei a riqueza cultural trazida de África ao litoral norte do estado e com a benção da Rainha Ginga, canto sua história ancestral, danço ao som da batida do tambor de maçambique, do quicumbi. Assim comunico nossa riqueza cultural e as belezas da morada das águas.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação