OPINIÃO

Poupança de longo prazo e crescimento

Correio Braziliense
postado em 02/03/2021 06:00

Por SELMO ARONOVICH — Economista do BNDES e executivo da instituição por 24 anos

A minuta de PEC para permitir a recriação do auxílio emergencial propôs acabar com a destinação explícita de várias receitas, isto é sua vinculação. É momento, portanto, de pensar se há cabimento em eliminar a vinculação de parte dos recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) a operações de investimentos sob gestão do BNDES.

A vinculação do FAT ao BNDES faz parte da Constituição desde a sua origem, em 1988, e falta uma análise fundamentada para uma mudança na escolha do constituinte que, além de não aumentar a poupança pública, teria impacto não só no BNDES, mas em inúmeros bancos menores, inclusive cooperativos, que recebem repasses de programas do BNDES, permitindo-os atender produtores em todo o Brasil e concorrer com os grandes bancos.

O BNDES não é uma jabuticaba. Governos no mundo todo apoiam o investimento de longo prazo e em bens de capital, com mecanismos que vão de garantias até recursos orçamentários. O Reino Unido acaba de anunciar um aporte de R$ 94 bilhões no seu Banco de Infraestrutura. O KfW foi capitalizado para ser o principal braço do governo alemão para o fornecimento de crédito para pequenas, médias e grandes empresas. O governo Trump reorganizou suas agências e as capitalizou, criando a Development Finance Corporation. Ou seja, da Coreia à Escandinávia, os bancos de desenvolvimento vêm sendo valorizados e tendo sua governança fortalecida.

O repasse da arrecadação do PIS/Pasep ao BNDES não é uma despesa no sentido econômico, mas, sim, uma poupança e fonte de segurança para o fundo dos trabalhadores. O BNDES assume todos os riscos da aplicação dos recursos do FAT e paga juros sobre esse capital, contribuindo com cerca de R$ 14 bilhões (valores de 2020) para o financiamento do seguro-desemprego e do abono salarial todos os anos.

Com a criação da Taxa de Longo Prazo (Lei 13.483/2017), não há mais subsídio fiscal. Cada real entregue ao BNDES vem sendo remunerado próximo ou acima do custo de captação do Tesouro. Ou seja, se o Tesouro tem de cumprir com certas despesas, é mais barato ele emitir nos mercados do que pegar os recursos do FAT sob gestão do BNDES. Basta comparar a remuneração da TLP paga pelo BNDES (6,4% em dezembro último) e o custo médio da dívida do Tesouro (4,4%) para ver que os recursos no BNDES rendem à nação não só pelos investimentos que possibilitam, mas pelo que é devolvido ao Fundo de Amparo aos Trabalhadores. Ao considerar o ano como um todo, os valores estão equilibrados, porém, o ganho fiscal surgiu no segundo semestre do ano e parece ser uma tendência para os próximos meses.

O nível de investimento no Brasil está em um mínimo histórico (15%). Enquanto isso, os desembolsos do BNDES caíram para R$ 60 bilhões/ano, o nível mais baixo dos últimos 20 anos, e o Banco devolveu R$ 414 bilhões ao Tesouro até 2019. O BNDES não foi ou será a única fonte para sustentar o crescimento. Todas as fontes são necessárias. Mas é importante olhar a proporção das coisas. Os mercados de capitais tiveram bom desempenho em 2020, com R$ 119 bilhões em ações (soma de transações de IPO e follow-on) e R$ 18,4 bilhões em emissões de debêntures de infraestrutura (R$ 33,8 bilhões em 2019). Mas só os 5% do PIB para chegarmos a uma proporção de investimentos/PIB sustentável (20%) representam R$ 350 bilhões (preços de 2019) a mais de crédito por ano, e não ter os recursos do FAT fará muita falta para se chegar lá.

Há quem diga que o BNDES não precisaria do FAT, porque poderia tomar emprestado no exterior. Um pequeno exercício pode mostrar como sai caro para as empresas que têm receitas em reais levantar recursos diretamente lá fora ou tomar recursos de uma linha em dólar. Imagine uma dívida de 10 anos amortizada de uma vez no final. A precificação dela se faz incorporando o custo da dívida pública e do swap cambial à taxa em dólar. No fim de fevereiro, o custo de uma emissão internacional para um projeto de infraestrutura (e.g., greenfield) estaria próximo a 6% ao ano em dólares, mas quando isso é traduzido em reais, por meio de um swap, a taxa sobe para 12,8%, o que pode inviabilizar muitos investimentos essenciais.

Há uma mudança de maré nos mercados internacionais, e eliminar um instrumento testado e conhecido de gestão da economia nessas circunstâncias parece imprudente. Surpreende que, depois que a Europa anunciou um plano de investimento verde de R$ 2 trilhões a R$ 3 trilhões de reais, parte canalizada pelo Banco de Investimento Europeu, que os EUA estejam desenhando um plano equivalente de talvez R$ 10 trilhões, exista alguém que esteja querendo desmontar agora um sistema que é tão importante para promover o investimento em momentos de estresse.

Em suma, não é hora de acabar com o mecanismo de vinculação do FAT, pois não vai aumentar a poupança nacional ou ajudar na equação fiscal, especialmente quando esses recursos não são mais subsidiados. E propor mexer no FAT agora parece mostrar despreocupação com os riscos que a economia brasileira pode enfrentar com a redução da liquidez internacional e o aumento dos juros ao redor do mundo que pode vir brevemente. Não é bom sermos pegos despreparados por escolha.

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