Por OTÁVIO SANTANA DO RÊGO BARROS — General de Divisão R1
Famílias que discutem. Amigos que se afastam. Companheiros que se agridem. Desconhecidos que se matam. É esse o produto, o caldo da paranoia existencial a que fomos submetidos com a eclosão da pandemia do coronavírus. Ela está nos consumindo. Não vou falar da intransferível responsabilidade das lideranças nacionais sobre o caos que vivemos. Nem dos lockdowns. Nem de isolamento social. Nem do distanciamento social. Nem do uso das máscaras. Nem da falta de vacinas. Nem da falta de seringas. Nem da falta de oxigênio. Nem da falta de leitos em UTI. Nem da cloroquina, ivermectina, azitromicina. Qualquer “INA”.
Vou falar de gente. Da gente. De mim, de você, dele, daquele, daquele outro, do vizinho do quarto andar, do cara da banca, do marombado na caminhada, da senhorinha na igreja, do rapaz do Ifood... Outro dia, sei lá que dia, vi na televisão um senhor, enquanto desfrutava a praia na baixada santista (lotada por sinal), rebater ao questionamento de um repórter.
— Por que no dia a dia, lá em Taboão da Serra, eu e tantos outros temos que nos deslocar para o trabalho em ônibus e trens lotados e não posso estar aqui na praia? Qual a diferença, senhor? Retrucou ao repórter.
Não há diferença mesmo! Enfrentar o risco de circular em estações lotadas de passageiros faz parte do instinto de amparo à família que nos assume o comando nos momentos de aflição. Esquece-se o perigo invisível do coronavírus.
É difícil criticá-los. Como não posso criticar também os donos e empregados de restaurantes, de salões de beleza, de lojas de conveniência etc., que fazem protestos contra as medidas de contenção ao espalhamento do vírus promovidas pelos governadores e prefeitos, corretas em sua finalidade.
Não desejo transformar o artigo em um tratado sociológico sobre o povo brasileiro. Para tal, os mestres Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, dentre outros, se deram a brilhante trabalho. Mas cabe uma pergunta, lembrança do título de uma canção de sucesso do grupo de rock Legião Urbana: Que país é este? Somos povo ou ralé?
“A ralé é fundamentalmente um grupo no qual são representados resíduos de todas as classes. É isso que torna tão fácil confundir a ralé com o povo” [...], comentou Hannah Arendt, em seu clássico Origens do totalitarismo. Logo, não se pode estratificar a culpabilidade de equívocos por classe social; é mais lícito fazê-lo por comportamento.
A maioria esmagadora, somos povo! Não somos ralé. Sofremos na falta de um rumo a velejar. Com o disse me disse. Com as incertezas científicas. Com as informações de redes sociais desencontradas, às vezes maldosas. Com declarações inconsistentes de autoridades. E, sem nos darmos conta, ao violarmos o direito de um único homem, violamos o direito de todos os outros.
O procedimento mais eficaz para evitar que essa pandemia continue se alastrando é o uso do bom senso. E bom senso independe de coloração partidária, matiz ideológico ou qualquer outra configuração de grupo político ou social. É coisa pessoal. Infelizmente, não é isso que observamos aqui no nosso país. Parece que vivemos em uma sociedade onde nunca conseguimos convencer ninguém, que já não esteja convencido.
É mister mudar o sinal dessa equação. Lutar para que as opiniões possam ser diferentes e, ao mesmo tempo, mutáveis, e o homem persuadido a fazer o certo alinhado ao consenso da maioria.
Dolorosamente, a história se repete como relatado por John Casti (O colapso de tudo): “As pessoas não querem levar a sério outra epidemia de gripe espanhola, SARS, gripe aviária, ou seja, o que for. Mas as doenças estão por aí. E vão pegá-lo — se você não abrir o olho”.
E o SARS-Cov-2, covid-19, nos pegou... Ainda estamos de olhos fechados? Não dá para acreditar! Que esperança não nos falte.
Paz e Bem!
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