Há muito tempo, nos anos sessenta, resolvi testar minhas habilidades manuais. Fiz matrícula em curso noturno de eletrônica, numa escola pública, em Brasília. A prova final consistia em apresentar um aparelho de rádio, que funcionasse, montado pelo aluno. Até aí, nada demais. Apenas um detalhe: sentava-se ao meu lado o aluno Vitor Nunes Leal, autor do consagrado Coronelismo, enxada e voto, ministro do Supremo Tribunal Federal. Ele chegava ao colégio dirigindo seu carro, participava de aula como qualquer aluno. Discutia, argumentava e interagia com os colegas. Uma pessoa normal.
No curso de direito, na UnB, minha turma teve o privilégio de ter como professores alguns ministros de tribunais superiores. Eles jamais faziam comentários políticos, nem avançavam em questões específicas que poderiam vir a ser decididas nas suas alçadas. O recato e a discrição eram atributos fundamentais para os juízes daquela época, além da conduta ilibada e do profundo conhecimento jurídico. Hoje é diferente. Há ministros que, abertamente, possuem instituição de ensino, parentes participam de escritórios e boa parte deles gosta de aparecer nos jornais. Só não falam sobre futebol, até agora.
Na semana passada, o ministro Gilmar Mendes ocupou durante quase 30 minutos a tela do Jornal Nacional, da rede Globo de televisão. Ele ficou mais tempo no ar do que o galã da novela das nove. Dias antes, o ministro Edson Fachin surpreendeu o país, ao anular todos os atos referentes aos quatro processos que envolvem o ex-presidente Lula. Esses processos tramitaram pela vara de Curitiba, pelo tribunal de Porto Alegre, pelo Superior Tribunal de Justiça e diversas vezes no próprio Supremo. Enfim, cinco anos depois, Sua Excelência, solitariamente, descobriu uma nulidade que invalidou tudo o que foi realizado até hoje. Outra ação levanta a suspeição contra o ex-juiz Sergio Moro. As duas decisões, que se excluem mutuamente, provocaram consequências eleitorais profundas. Não sei em que país isso seria possível.
Do ponto de vista político, ocorreu um golpe de estado produzido pelo Supremo Tribunal Federal de maneira muito sofisticada. A decisão do ministro Fachin, que ficou a tarde inteira nas telas de televisores do país inteiro, foi cirúrgica. Ele decidiu pela nulidade de todos os julgados naqueles quatro processos que atingem apenas o ex-presidente Lula. Os demais acusados não são tocados pela sentença. Com essa decisão, o ex-presidente tornou-se elegível. Aparentemente, o objetivo subsidiário era proteger o ex-juiz Moro. Mas o ministro Gilmar Mendes, com base em gravações obtidas por meio discutível, avançou na sua vingança contra o pessoal de Curitiba, os procuradores e o ex-juiz. As duas decisões têm o condão de abalar a reputação do Supremo Tribunal Federal do Brasil, casa que já abrigou grandes juristas e ficou ao lado da resistência em tempos da ditadura.
Mas, no terreno da política partidária, Lula voltou com estilo, elegância, eloquência e crítica. Falou bonito, homenageou amigos, correligionários, brasileiros e estrangeiros, chegou até a mencionar o Papa Francisco, que lhe enviou uma carta e, posteriormente, o recebeu em audiência privada no Vaticano. O Lula de hoje é diferente do Lula de antes da prisão. Reclusão ensina, educa, faz pensar e rever toda a vida. O ex-presidente pensa em morar na Bahia, em Lauro de Freitas, nas cercanias de Salvador. Hoje, vive com a mulher nova em São Bernardo. Passou férias em Cuba. Tudo mudou na vida do antigo metalúrgico. Nada disso impedirá sua eventual candidatura, mas será outra pessoa, com outro objetivo e testado ao extremo pela prisão de mais de 500 dias.
Bolsonaro sentiu o golpe. Tratou de colocar máscara e discursar a favor da vacina. Segundo ele, até o final deste ano, o país terá mais de 400 milhões de doses. Se acontecer, conseguirá vacinar quase todos os 210 milhões de brasileiros. Ele tem mais um ano para livrar o país da pandemia, consertar a economia e se organizar para enfrentar o novo rival. Além dele, o show promovido pelo Supremo colocou em evidência o ex-ministro Sergio Moro. Hoje, é ele reconhecido por boa parte da sociedade brasileira como o personagem que combate a corrupção dentro do governo. Ele é o avesso de quem o critica.
O golpe modificou o cenário da sucessão presidencial e aprofundou o desgaste do mais importante tribunal do sistema judiciário brasileiro. Não é obra pequena, ao contrário, ação para entrar para a história política do país. Foi caso muito bem pensado, arquitetado e melhor executado.
*Jornalista
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