Por Otávio Santana do Rêgo Barros — General de Divisão R1
Às quatro horas da tarde, no dia 27 de outubro de 1915, a natureza inclemente da noite invernal antártica venceu o homem apaixonado pelas aventuras.
A força das banquisas que estrangulavam o costado do Endurance há nove meses, aprisionado no Mar de Weddell, rompeu o madeirame do navio, assinando a sua sentença de morte.
A voz resignada do comandante da expedição, embora cheia de convicção, ordenou: “Está acabado, rapazes. Acho que está na hora de desembarcar.”
O grupo com 27 exploradores, liderados por Sir Ernest Shackleton, transferiu equipamento, comida, animais e outros bens de interesse para um acampamento improvisado no meio de um banco de gelo.
Havia serenidade e notável ausência de desânimo.
Passariam à deriva cerca de cinco meses, enfrentando temperaturas de –37ºC, até que o derretimento da placa os obrigasse a lançar três pequenos barcos (Caird, Wills e Docker) em águas gélidas e agitadas rumo a uma terra firme que doravante os abrigasse.
Alcançaram a Ilha Elephant, em 9 de abril de 1916, após uma travessia em mar encapelado, cheia de perigos a cada nova onda. Velas e remos foram a força motora. O pedaço de terra era um rochedo inabitável, coberto de excrementos de aves e animais marinhos. Como relata Alfred Lansing em sua obra, A incrível viagem de Shackleton, “terra sólida, inafundável, irremovível, abençoada.”
Tão logo Shackleton identificou a impossibilidade de sobreviverem naquelas condições, organizou mais uma corajosa jornada, cujo intento era alcançar uma ilha habitada que tivesse meios de resgatar toda a tripulação.
Os que ficaram não se sentiam abandonados, tinham plena confiança de que seu comandante os salvaria. Ele inflamava a alma de seus homens. Napoleão afirmava: “Um líder é um negociante de esperanças.”
No dia 24 de abril de 1916, o “Chefe”, como Shackleton era chamado, reuniu os cinco tripulantes mais aptos e se lançaram no Caird para atravessarem a mais perigosa das águas do Atlântico Sul, a temida passagem do Drake.
Ventos com a força de furacão, ondas gigantescas, condições climáticas insuportáveis foram alguns dos desafios desse grupo até tocarem a costa leste da Ilha Geórgia do Sul. Era o dia 10 de maio de 1916. Já se passavam 522 dias da partida no porto de Grytviken, naquela mesma terra da salvação.
Pouco lhes faltava para alcançar a tão sonhada ressureição. Uma marcha de 45km em linha reta através de terrenos escarpados, cobertos de neve, geleiras instáveis, a cerca de 3.000 metros de altura.
Shackleton reuniu as últimas energias para empreender essa pernada. Ao final da marcha, encontrou um grupo de pescadores de baleias que veio ao seu encontro quando os viram descer a ravina escorregadia barbados, sujos, maltrapilhos, magérrimos e com profundas olheiras.
- Eu sou Shackleton.
Não podiam acreditar!
Mais três meses e várias tentativas, Ernest pessoalmente resgatava os últimos 22 homens, jamais desesperançados, na Ilha Elephant.
A saga da tripulação do Endurance, inspirada por Sir Ernest Shackleton, é, sem dúvida, um dos maiores exemplos de liderança do mundo moderno.
A obra Shackleton, uma lição de coragem, de autoria de Margot Morrels e Stephanie Capparell, sintetizou os feitos do “Chefe” e organizou seus princípios de “co (+) mandar”. É uma ótima leitura!
Qual a razão para citar Shackleton neste momento? O nosso país, em algumas áreas, está cercado por banquisas ameaçadoras de incompetência, amadorismo, teimosia e falta de empatia.
O nosso Endurance está prestes a ter o seu costado rompido. Não estamos organizados! A jornada que teremos de enfrentar para sairmos da crise é perigosa e cheia de obstáculos. Estamos quase sem combustível e pouquíssima alimentação.
É hora de descobrir um líder com as características do “Chefe”. Que tenha, sobretudo, condições morais de cativar a tripulação. Que seja humilde, aceite críticas, identifique os desafios, planeje soluções para, como ocorreu à tripulação daquele navio, resgatar a nossa sociedade.
Shackleton estava convencido de que a única chance daquele grupo era permanecerem juntos. E assim os manteve. Venceram o mortal desafio.
Dividir é sentença de morte. O líder que estimula a divisão da sociedade é um parvo. E, lastimosamente, estamos sendo estimulados e divididos por posturas egocentristas.
A propósito, a missão da equipe era cruzar a pé o continente Antártico, considerado a última fronteira da humanidade. Tarefa não cumprida. Que importa?
Estavam todos vivos ao término da desafiadora jornada glacial.
Quem dera tivéssemos um Shackleton!
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