Por FÁBIO MEDIDA OSÓRIO — Advogado, ex-ministro da AGU
O site The Intercept trouxe à tona, por meio de provas ilícitas, uma discussão sobre possíveis abusos da operação Lava-Jato no Brasil. É certo que não se deve alimentar, sob hipótese alguma, o uso daquelas provas para sustentar processos ou censuras judiciais e administrativas contra magistrados, membros do Ministério Público ou autoridades policiais. Tal situação fomentaria a atuação futura de hackers no cometimento de crimes semelhantes, o que seria logicamente inaceitável. Haveria o fortalecimento de milícias digitais para invasões à privacidade de autoridades públicas como técnica para obtenção de provas ilícitas, com finalidade de devassa em operações policiais ou judiciais.
Certamente um precedente dessa natureza seria incompatível com um Estado Democrático de Direito. Não obstante, pode-se discutir, em cada caso concreto, métodos para validação dessas provas a partir da abstração do conceito de provas ilícitas e sua consideração como indícios. Isso porque eventuais crimes ou ilícitos administrativos constatados a partir de outras provas podem ser punidos, em cotejo com provas e indícios. E, se houver provas independentes das provas ilícitas, evidentemente que as punições ou censuras podem ser impostas.
De qualquer sorte, numa democracia, o julgamento das autoridades ocorre também perante a opinião pública, que é fonte de legitimidade do poder dos agentes públicos. A sociedade deve avaliar seus representantes. E, nesse cenário, deve-se fortalecer a liberdade de imprensa e a credibilidade das informações que divulga e que discute com a sociedade. Em tal contexto, muitos dos diálogos revelados pelo aludido site e por outros veículos revelam posturas inaceitáveis de agentes públicos, inclusive provas forjadas para prejudicar direitos de defesa, sem falar na tentativa opressora de sangrar empresas e acusados como se fossem alvos desprovidos de direitos.
A preservação do contraditório e da isonomia processual são pilares de um Estado Democrático de Direito. Obviamente, algumas conversas entre magistrados e membros do Ministério Público são normais, integram o jogo processual e nem sempre caracterizam quebra do contraditório. Porém, inventar inquirições inexistentes de testemunhas e cogitar sua falsa reinquirição constitui conduta eticamente reprovável a toda evidência.
Um dos abusos mais corriqueiros foi o vazamento criminoso de informações para veículos de comunicação sob o pretexto de se utilizar uma estratégia de desconstrução da imagem de pessoas investigadas em operações policiais ou do Ministério Público. Tal procedimento espúrio resultava de uma concepção arraigada acerca do funcionamento da mídia como um tribunal paralelo de julgamento moral dos acusados e de pressão sobre o judiciário.
Assim, os investigadores jogavam nomes de seus alvos na mídia para observar seus movimentos por intermédio de eventuais escutas telefônicas ou outros métodos invasivos da privacidade. Ocorre que, muitas vezes, tais alvos seriam pessoas inocentes, cujas reputações viriam a ser irremediavelmente manchadas por ataques covardes nos meios de comunicação social. Desse modo, a estratégia acusatória visava a destruição de reputações fora do ambiente processual e totalmente à margem do Judiciário.
Outro abuso já constatado foi a divulgação na mídia de nomes de acusados e réus em processos que correm em segredo de justiça. Tal situação já ocorreu em site do próprio Ministério Público, mas também através de vazamentos criminosos e seletivos para órgãos de imprensa, como se disse antes. Mais ainda, houve divulgações ilícitas de nomes de personagens envolvidos em operações atípicas como se estivessem participando de operações criminosas, tudo com o objetivo de manchar suas reputações.
Como se sabe, uma operação atípica não se confunde com algo ilegal. Esse modus operandi de muitos membros do Ministério Público teve por objetivo apenas causar danos morais e materiais e impor um castigo à margem do Poder Judiciário a pessoas que a instituição fiscalizadora consideravam transgressores da lei ou demasiado próximas de seus alvos. Eram fórmulas de justiça de “mão própria”. Assim, as autoridades transformaram-se em agentes não da lei, mas de suas vontades individuais.
Como se percebe, em muitas ações do Ministério Público Federal, na Lava-Jato, houve uma distorção do princípio da independência funcional, que se mostrou apanágio para o arbítrio. Investigações baseadas em delações desprovidas de qualquer mínimo elemento de corroboração integraram esse panorama, autorizando imaginar-se que muitos relatos poderiam, inclusive, ser direcionados para alvos escolhidos pelas autoridades.
O próprio Conselho Nacional do Ministério Público investiga possíveis delações direcionadas na operação Lava-Jato do Rio de Janeiro. Sem dúvida, há muitos aperfeiçoamentos em curso no campo dos controles e de fiscalização no Brasil e um papel fundamental nessa revitalização do Ministério Público tem sido desempenhado pelo atual procurador-Geral da República, o qual tem denotado um forte compromisso com o ideário democrático e de defesa dos direitos fundamentais, além do firme combate à corrupção.
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