Por ADRIANA MODESTO — Doutora em transportes pela Universidade de Brasília (UnB)
A pandemia da covid-19, dada a sua gravidade e o quantitativo de vidas ceifadas em pouco mais de um ano, tem requerido esforços por parte das autoridades públicas no que tange às medidas preventivas recomendadas pela comunidade científica; testado os conhecimentos de pesquisadores e especialistas; reclamado o sistema de saúde; exigido o trabalho de profissionais da saúde nos limites da exaustão; ocupado grande parte das pautas dos periódicos de notícias; tirado o sono da sociedade, sobretudo diante do propagado falso dilema, “a bolsa ou a vida”; e penalizado de forma mais severa estratos sociais mais vulneráveis.
No entanto, em razão da entrada em vigor das alterações do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), solicita-se aos leitores a compreensão da necessidade de uma pausa na pauta prioritária para tratar da nossa epidemia cotidiana, os sinistros de trânsito, que igualmente penalizam de forma mais severa os segmentos sociais mais vulneráveis e cujos impactos incidem de forma contundente nos serviços de saúde que, nas circunstâncias da covid-19, sinalizam possibilidade de esgotamento de sua capacidade de atendimento. Sim, os determinantes sociais da saúde são ratificados tanto nas estatísticas de morbimortalidade em decorrência da covid-19 como nas dos sinistros de trânsito.
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), entre os principais motivos para o óbito de jovens estão os traumatismos decorrentes dos sinistros de trânsito, o gênero masculino é aquele com maior participação nesses eventos, mais da metade de todas as mortes têm como vítimas pedestres, ciclistas e/ou motociclistas, e 90% das mortes ou lesões relacionadas ao trânsito ocorrem em países cuja renda da população é média e baixa.
Os prejuízos decorrentes dos sinistros de trânsito não se restringem às vítimas, provocam custos de 1% a 3% do Produto Interno Bruto (PIB) de grande parte dos países, requerendo das autoridades públicas a adoção de medidas preventivas. Salienta-se, porém, que a responsabilidade por um trânsito seguro é compartilhada com a sociedade. Diante do exposto, deduz-se como elementos comuns entre covid-19 e sinistros de trânsito a influência da prevenção e do comportamento social. Tendo em vista as características inerentes ao trânsito, para se alcançar uma ambiência segura e organizada, é necessário contemplar dimensões da engenharia, educação, urbanismo, participação social e esforço legal. De mesmo modo como se interrelacionam, sendo corroboradas ou prejudicadas.
As alterações no CTB aludem à dimensão do esforço legal e contemplam 57 alterações que tratam desde validade, mudanças de categoria e condições para a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), exame toxicológico, normas de circulação, vedação de penas alternativas para condutores condenados por homicídio culposo ou lesão corporal sob efeito de álcool ou drogas, pagamento de multas de trânsito, processo de formação de condutores, criação do Registro Nacional Positivo de Condutores (RNPC), entre outras.
As alterações propostas abordam diversidade de naturezas, e o conjunto delas é percebido como heterogêneo, tendo em vista os potenciais resultados ou desdobramentos. Há pontos que convergem às recomendações de segurança viária e outros são percebidos como uma espécie de afrouxamento da legislação de trânsito.
O que se argumenta é que, partindo-se do pressuposto do reconhecimento da falibilidade humana, há a necessidade de que sejam dispostas barreiras, compreendidas como mecanismos ou ações capazes de evitar ou mitigar os sinistros de trânsito. Ratificada a inferida dubiedade no conjunto das alterações do CTB, supõe-se a possibilidade de fragilização da dimensão do esforço legal comprometendo a abordagem sistêmica.
Por um lado, é necessário conhecer e respeitar a legislação de trânsito e respectivas alterações. Por outro, carece compreender quais parâmetros as fundamentaram, em quais arenas foram decididas, que forças influenciaram na composição do texto final, quais demandas foram priorizadas ou descartadas. Traçando-se um paralelo, conclui-se que tanto as ações pertinentes à pandemia quanto as ações pertinentes ao trânsito devem ser concebidas sob a égide da clareza de intenções, pautadas por parâmetros técnico-científicos, referendadas por boas práticas, sensível às recomendações de especialistas, ainda que, eventualmente, possam desagradar interesses de certos segmentos, pois o objetivo primordial é a preservação da vida em ambos os casos.
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