VERA LOPES
Gestora do Espaço de Humanidades Ossos 21, no bairro Santo Antônio Além do Carmo, de Salvador (BA)
O amplo saguão do Centro Municipal de Cultura ficou pequeno para o tanto de pessoas que, naquela gelada sexta-feira, 13, compareceram ao lançamento do livro Hamlet Sincrético – Em Busca de um Teatro Negro, no 26º Porto Alegre em Cena — Festival Internacional de Artes Cênicas. Ocasião em que apresentamos a performance-espetáculo Noite Sincrética na Sessão Maldita do festival. O numeroso público que atendeu ao chamado atestou que o trabalho realizado pelo “Caixa” possui raízes profundas com frutos saborosos e atrativos.
Nascemos como grupo de teatro quando um coletivo de artistas negras e negros, das mais diferentes áreas do fazer teatral e/ou a ele relacionados, juntou-se. Em comum, o desejo de levar aos palcos espetáculos que priorizassem a estética negra em sua amplitude. O grupo recebeu o nome de Caixa-Preta e a peça de estreia foi Transegun, obra do escritor paulista Cuti-Luis Silva. Fomos muito bem recebidos, em especial pelo público negro, que, desde então, tem acompanhado nossas produções, aplaudindo, incentivando, divulgando.
Nosso segundo espetáculo foi Hamlet Sincrético. Divisor de águas no cenário cultural gaúcho, com direção e concepção de Jessé Oliveira, inspirado no clássico de William Shakespeare e estruturado em elementos da cultura e da religiosidade afro-brasileira que serviram de metáfora para construir a narrativa dramática. A ousada montagem, ambientada no Hospital Psiquiátrico São Pedro, causou impacto, chamou a atenção da crítica e potencializou a democratização do espaço cênico. Em cada apresentação, mais de cinquenta por cento dos presentes eram pessoas negras. Novidade estrondosa nas plateias de teatro do Sul do país.
Esse feito histórico está relatado no livro Hamlet Sincrético – Em Busca de um Teatro Negro, que traz depoimentos de quem assistiu ao espetáculo, de atrizes e atores do elenco, do diretor que detalha concepção, elaboração e direção. E também artigos acadêmicos sobre o espetáculo, críticas, algumas matérias publicadas na imprensa, fotos, muitas fotos lindas, e breve resumo de outras montagens do Caixa-Preta. O livro foi organizado por Jessé Oliveira e Vera Lopes.
O encontro entre diretor e atriz, Jessé e Vera, deu-se ao iniciarem as conversas sobre a possibilidade de apresentar um projeto para disputar o edital de fomento à cultura. Depois de alguns encontros, vieram outras pessoas, e o projeto foi elaborado, apresentado, defendido e contemplado no Fumproarte — Fundo Municipal de Apoio à Produção Artística.
Assim, começávamos a escrever a história do Caixa-Preta, do qual sou uma das fundadoras. Muitas pessoas colaboraram, muitos profissionais passaram pelo Caixa e cada uma/um com seu saber contribuiu para consolidar o grupo como referência negra nas artes cênicas na cidade. Recebemos formação, realizamos formações. Até o momento, são sete montagens de espetáculos. Participamos de festivais no Brasil e no exterior, recebemos prêmios nacionais e internacionais. Realizamos encontros para discutir a participação negra na cultura, na formação do povo brasileiro. Editamos revista e livro.
Sou atriz com 42 anos ininterruptos de atuação e, num país racista como o nosso, tal fato é um feito. Comecei no teatro em 1978, com a peça O pulo do gato, direção de Décio Antunes. No cinema, estreei no premiado curta O Dia em que Dorival encarou a Guarda, de Jorge Furtado e José Pedro Goulart, de 1986. Trabalhei em alguns filmes de curta e longa metragens, fiz fotonovela e propagandas. Montei Recitais Poéticos Musicais, nos quais assino a pesquisa, o roteiro e também atuo. Desses, destaco: Batuque tuque tuque, baseado na obra poética de Oliveira Silveira; Quadros, baseado na obra poética de Carolina Maria de Jesus, e Minas de Conceição Evaristo, igualmente baseado na obra poética de Conceição Evaristo.
Quando a pandemia se instalou, estava atuando em duas séries, Nós somos pares, de Camila de Moraes; ChristiAna, de Roni Nogueira, e ainda estava escalada para o elenco da série Éborá, de Diego Alcântara.
A literatura é um outro espaço de “flerte”. Tenho a honra de ser coautora do escritor CutiLuis Silva no texto teatral Tenho Medo de Monólogo. Também assumo com Jessé Oliveira a edição da Revista Matriz e a organização do livro Hamlet Sincrético, ambos editados pelo Caixa-Preta. A propósito, atualmente o grupo Caixa-Preta encontra-se em pausa reflexiva.
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