OPINIÃO

Artigo: Da periferia aos palcos do Brasil

Correio Braziliense
postado em 01/05/2021 06:00

Por LILIANA CARDOSO DUARTE — Declamadora, mestre de cerimônias, ativista cultural, vice-presidente do Conselho Estadual da Cultural do Rio Grande do Sul

A voz da negritude por meio do verso gaúcho marca tambor e timbre em uma guria que, aos oito anos, despertava para a arte de declamar. Oriunda da periferia de Porto Alegre, essa voz da interpretação é de uma negra que, no decorrer de sua trajetória, enfrentou vários obstáculos. Começando no Centro de Tradições Gaúchas (CTG) do bairro, aquela guria de voz potente demonstrava toda força e superação. De uma família de cinco irmãos, os pais sempre reforçaram que a cultura e a educação teriam que andar lado a lado e que, se fosse fácil, o protagonismo não era pra nós.

Diante do obstáculo de origem, da periferia, como talentosa sonhadora, fiz-me força e coragem em busca do conhecimento da história e das particularidades da poesia do sul do Brasil que, em sua forma de declamar, é diferenciada.Muitos poucos poemas a enaltecer a negritude, menos ainda a mulher negra como protagonista.

Fiz-me alma e campo e na trincheira da imaginação, fui em busca de uma batalha que nunca me fez desistir, afinal, o que me motivava era aquela frase dos meus pais,“Se fosse fácil...” Eu e meu pai, José Luiz Rodrigues dos Santos, saímos a campo, trilhando bibliografias, indo a encontros poéticos, convivendo com os grandes vates da cultura gaúcha, porém, ainda sempre procurando o protagonismo nos concursos pelo estado.

Fui testemunha de jovens negros e negras que não tiveram chance de mesclar a cultura com seu cotidiano de vida na possibilidade de adentrar estes galpões. Tornei-me uma lanceira negra dentro do tradicionalismo e destacada declamadora na história gaúcha, seis vezes campeã estadual e em mais de 300 rodeios nacionais e internacionais, entre festivais de poesia, como intérprete. Afinal, a história que eu sempre apostei foi a de que os lanceiros negros foram a vanguarda na Revolução Farroupilha, bruscamente traídos no massacre de Porongos.

Portanto, tinha que ser, sim, uma lanceira negra contemporânea em busca de espaço e reconhecimento de todo aquele legado e contribuição da cultura negra na construção do estado garrão deste país. E foi neste movimento, formatado em base masculina, em que comecei a perceber que as mulheres não eram protagonistas, isto lá pelas décadas de 1980 e 1990. Lembremos que o movimento tradicionalista gaúcho tem mais de 50 anos e, só em 2019, é que foi eleita a primeira mulher para presidir a entidade, ainda com pouca adesão de negros e negras e menos e ainda em posições de destaque.

Foi por meio da poesia que trilhei por este Brasil, levando o projeto A arte de declamar no gauchismo, com meu pai. A empreitada propiciou palestras em entidades tradicionalistas e universidades e rendeu dois livros.

Mas foi na mesma periferia de onde vim que deu-se o pontapé inicial. O projeto adotado pela Secretaria de Educação estadual, por intermédio da Escola Aberta, propiciou-nos levar a poesia gaúcha às escolas das periferias da zona norte de Porto Alegre. O ápice foi descobrir-se que, dentro da identidade do gaúcho, a efetiva contribuição dos lanceiros negros na revolução Farroupilha era algo pouco falado, quase invisível. Como peça fundamental, faltava alardear a contribuição da cultura negra na culinária, nas danças, na arte e na literatura.

Viu-se a necessidade de se realçar o protagonismo da mulher negra em toda a sociedade que a invisibiliza, relegando-a a papel secundário. Mas lá estava eu, aquela jovem sonhadora que trazia dentro de si todo o legado de pertencimento para empoderar outros tantas jovens negras e também rapazes negros que enxergaram em mim a possibilidade de sonhar, de realizar e de se tornar protagonista, enfrentando uma sociedade que não facilita concessões. Tornei-me assim declamadora premiadíssima.

Sempre digo que, quanto a mim, a poesia e a arte declamatória são um divisor de águas, forjando e lapidando esta mulher negra que sou, que, pela cultura e educação, fez da poesia declamatória uma arena salutar de reafirmação na busca do saber e do protagonismo, para podermos, assim, pautar o que somos e o destino que queremos nessa história pujante em que ainda se insiste em que “heróis” sejam brancos e homens. Mas, nessa história há heróis negros, como Oliveira Silveira, poeta da consciência negra, que abriu a foice e machado as tantas estradas pelo reconhecimento de toda essa contribuição, sendo, por isso mesmo, base fundamental da cultura negra deste estado. Finalizo dizendo que, na próxima reencarnação, se houver, quero voltar mulher negra, declamadora e gaúcha. Um abraço de meia-volta!

Que botada!

 

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