OPINIÃO

Artigo: Sobre farricocos e fanáticos

Rodrigo Craveiro
postado em 05/05/2021 06:00

Sou goiano. Respeito e amo as tradições e a cultura de meu estado. Minhas melhores lembranças incluem as viagens à Cidade de Goiás com meus avós durante a Semana Santa. A imagem dos farricocos — perseguidores de Cristo, descalços e com capuzes coloridos em forma de cones — acompanhando o esquife com o Senhor morto e segurando tochas é algo forte e marcante. O Fogaréu, procissão que ocorre todas as quarta-feiras de cinzas, costuma ser um espetáculo à parte. Mas, também, um evento de devoção e de fé. Um mar de tochas iluminando as ruas da cidade secular em trevas (todas as luzes são apagadas a partir de meia-noite) e dourando as águas do Rio Vermelho. Sou goiano e me ofendi profundamente com o desvirtuamento de um símbolo religioso.

No último sábado, diante da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, dois elementos vestidos como farricocos participaram de um protesto em apoio ao presidente Jair Bolsonaro. Não bastasse o fato de a indumentária ser absolutamente tosca para o evento, eles ostentaram um imenso cartaz amarelo com uma frase não menos bizarra: “Deus, perdoe os torturadores”. Embaixo, de forma grotesca, um cartaz menor com outra frase absurda: “Nosso Brasil pertence ao Senhor Jesus”. A vestimenta é referência aos farricocos, mas, sobretudo, à Ku Klux Klan, organização supremacista branca que torturou e matou negros, enquanto fincava suas cruzes em chamas nos Estados Unidos.

Pasmem! Além de sequestrarem uma indumentária que remete aos farricocos e está associada a uma secular tradição, e ao catolicismo, posaram para fotos diante de uma das igrejas mais icônicas da cidade. É ali que os farricocos fazem uma parada, durante o Fogaréu, para a encenação da Santa Ceia. À ofensa a uma cultura soma-se o desprezo por uma religião e pelo capítulo mais sombrio de nossa história. Como falar em nome de Deus ao pedir que Ele “perdoe” os torturadores? Como citar o nome de Jesus Cristo quando vangloriam de atrocidades, em frente a uma igreja?

Em nome do bom senso, da cultura e da festa religiosa mais famosa de Goiás, espero que as autoridades tomem as devidas providências contra pessoas que se aproveitam da “liberdade de manifestação” para enxovalhar a cultura, a religião e a própria democracia. O Brasil não precisa de saudosistas da ditadura. Precisamos, sim, de punição aos torturadores e de reparação às vítimas. Tenho a certeza de que, não somente goianos, assim como eu, mas brasileiros que tenham o mínimo de discernimento e equilíbrio sentiram-se incomodados com aquele gesto de fascismo e de aversão absoluta ao Estado de direito, à fé alheia e às tradições de um povo.

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