Lições constitucionais da Revolução do Haiti

No aniversário do símbolo da independência haitiana, que a experiência constitucional revolucionária dos jacobinos negros possa servir de farol para novas viagens constitucionais no Brasil

Correio Braziliense
postado em 22/05/2021 06:00
 (crédito: Gomez)
(crédito: Gomez)

MARIA DO CARMO REBOUÇAS DOS SANTOS
Professora de direito da Universidade Federal do Sul da Bahia; autora do livro Constitucionalismo e Justiça Epistêmica: o lugar do movimento constitucionalista haitiano de 1801 e 1805

 

Em 18 de maio de 1803, durante o Congresso de Arcahaie liderado por Jean Jacques Dessalines, os haitianos rasgaram a bandeira francesa e, juntando as partes vermelha e azul, formaram a bandeira do Haiti, que se tornaria o primeiro país independente do jugo colonial nas Américas, por uma revolução, em 1º de janeiro de 1804.

A revolução haitiana ocorreu no mesmo período histórico da guerra de independência das 13 colônias estadunidenses contra a Inglaterra, em 1776, e da revolução francesa contra o absolutismo monárquico, em 1789. Contudo, foi o advento histórico haitiano do final do século XVIII que constituiu a primeira e única experiência de criação do Estado moderno em uma colônia americana, protagonizada por pessoas escravizadas e livres, que teve como cerne a abolição da escravidão e do racismo, tudo isso materializado em duas Constituições aprovadas em 1801 e 1805.

Sabemos que estudos contemporâneos de eventos históricos sempre correm o risco de reinventar o passado. Mas, para que isso não ocorra, as interpretações retroativas precisam estar cientes do sentido e alcance de instituições, regras, princípios e categorias jurídico-políticas no espaço-tempo em que ocorreram, a fim de poder capturar suas verdades históricas.

Assim, parece ter sido feito na análise dos eventos históricos que ocorreram na modernidade e deram ímpeto à formação dos estados modernos e das teorias explicativas dos movimentos constitucionais modernos. Contudo, esse mesmo rigor não foi utilizado no momento de decidir quais seriam os modelos teóricos relevantes a serem contados, analisados, interpretados. Antes, de modo bem parcial, somente três modelos, com suas contradições, foram eleitos como únicos passíveis de serem referenciados e mimetizados, porque materializavam o pensamento filosófico, jurídico e político eurocêntrico daquele período: o francês, o inglês e o estadunidense e que, portanto, deveriam servir de farol para novas viagens constitucionais.

A Europa como produtora da realidade inspirou e justificou toda uma produção científica e filosófica que instruiu diversos campos do conhecimento, particularmente da filosofia e do direito, com a instituição do homem universal, da razão universal e dos direitos universais, europeus. Nesse período, vimos surgir as bases epistemológicas de uma “razão negra” ou uma “consciência ocidental do negro” como nos sugere Achille Mbembe, ante a uma suposta superioridade racial do branco-europeu que reforçava uma postura iluminista de excluir existências não europeias e relegá-las a um estatuto ontológico menor.

Tudo isso nos leva a compreender o constitucionalismo fundado em uma razão ocidental que centraliza a história, a filosofia e o direito a partir da experiência etnocêntrica particular europeia e estadunidense, que, por sua vez, é tributária dessa lógica de superioridade cultural da modernidade.

A reprodução acrítica dos marcos analíticos eurocêntricos no ensino do Direito Constitucional causou impactos ético-políticos severos na filosofia da história ocidental e do direito, uma vez que justificaram a ausência da ordem constitucional haitiana como fato histórico e jurídico constitutivo do constitucionalismo moderno válido, e até hoje abona a sua ausência nos estudos contemporâneos do constitucionalismo no Brasil.

Do questionamento do eurocentrismo, não decorre uma necessidade de rasurar ou negar as teorias e categorias ocidentais, mas mobilizá-las, cientes dos limites que se circunscrevem a experiências ocidentais. Sem rejeitar nem aceitar cegamente as categorias e teorias ocidentais, o esforço que se requer na busca por uma justiça epistêmica nos estudos do constitucionalismo, é propor outro rigor hermenêutico na análise dos movimentos constitucionalistas modernos.

É fundamental revelar como o povo haitiano, “pelos seus próprios traços”, estabeleceu novos significados para o sentido e alcance de categorias universais tão caras e centrais ao projeto do constitucionalismo moderno, como a liberdade e a igualdade, articulando ideias e ações próprias para forjar uma gramática emancipatória real com a abolição da escravidão e a proibição das hierarquizações raciais baseadas na cor.

No aniversário do símbolo da independência haitiana, que a experiência constitucional revolucionária dos jacobinos negros possa servir de farol para novas viagens constitucionais no Brasil. 

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