A África é um continente rico e diverso, mas é visto, com frequência, como um espaço homogêneo e associado à pobreza, não só nas representações nos livros didáticos, mas, também, na imagética social; há décadas vem sendo assim. Durante um bom tempo, a história africana foi apenas conhecida no Ocidente europeu por meio do paradigma que o filósofo alemão Hegel descreveu como a inexistência do fato histórico antes da colonização europeia no continente, tendo os africanos permanecido em estado de barbárie, selvageria e infantilidade, até o encontro com os colonizadores europeus.
Na interpretação hegeliana, a África subsaariana ou África Negra era, em si, exótica, primitiva, dominada pelo caos geográfico e impenetrável, o que a fazia sem autonomia para construir as próprias histórias, por viver seus habitantes em estado de completa selvageria. Como bem sabemos, os filósofos alemães são produtos de seus tempos históricos e tanto a visão hegeliana quanto as visões kantianas estavam impregnadas, também, sobre um alicerce iluminista de interpretação vertical sobre as relações sociais e históricas. Além desses autores, muitos outros filósofos europeus dos séculos 17 e 18 foram responsáveis pelo engrandecimento do ideal de supremacia e dominação europeia.
Para o historiador Carlos Lopez, as raízes da inferioridade africana são muito mais profundas, “elas inseriram-se nas bulas papais Dum Diversas, data de 1452, e Romanus Potifex, 455, que deram o direito às monarquias europeias, sobretudo à portuguesa, de despojar e escravizar eternamente os chamados ‘maometanos’, pagãos e povos pretos em geral”. Em especial a Dum Diversas previu claramente o direito de invadir, conquistar, expulsar e dar lugar aos infiéis e inimigos de Cristo, onde quer que eles fossem encontrados na terra.
Entretanto, na década de 1960, em virtude dos processos de independências das colônias africanas e pela construção de uma identidade descolonizada, começou um forte movimento de mudança nos métodos, abordagens e escrita, que tinham como intuito positivar as culturas africanas e, em especial, as culturas africanas ao sul do Saara. Tal movimento, encabeçado pelo historiador burkinabe Joseph Ki-Zerbo, colocou em questão as interpretações europeias simplistas e marginais sobre o continente africano, pois, durante muito tempo, a história da África foi uma espécie de capítulos de antropólogos e etnografia inundados de simbolismos nutridos pelo princípio da inferioridade e o intenso desejo de civilizar o africano modelando-o ao que é considerado superior. Assim, tendo como argumento central que “A África também tem uma história”, nasceu sobre a prerrogativa de reescrever as histórias africanas sob o âmbito da pluri e interdisciplinaridade. Destarte, a proposta, colocada pelo historiador burquinense, anunciou um novo futuro possível para as construções das alteridades dentro do continente.
A finalidade dos Ki-Zerbo, bem como a de outros historiadores africanos, era desvincular a história do continente africano da concepção epistemológica frutificada pelo hegelianismo, que entendia que um povo sem escrita é um povo sem passado, sem história e, igualmente, sem cultura, uma interpretação simplista e reducionista da complexidade efetiva da historiografia do continente africano. A imparidade historiográfica africana está ligada ao apego mnemônico e à oralidade como elemento legítimo e válido para se pensar a história, pois é através desta, centrada também na ancestralidade, coletividade do grupo e na identidade, que o indivíduo africano é constituído e construído socialmente.
Em tempo. Joseph Ki-Zerbo (21 de junho de 1922/4 de dezembro de 2006) foi historiador e educado na Universidade de Sorbonne, em Paris, graduando-se com um grau de honra em história pelo Institut d’Études Politiques, em Paris, em 1955. Retornou à África, primeiramente a Conacri (Guiné) e, então, à sua cidade natal Burkina Fasso, onde foi politicamente ativo desde 1958. Até sua morte, foi um dos líderes do partido de oposição pelo Parti pour la Démocratie et le Progrès (PDP). Paralelamente a sua vida política, foi um grande estudioso, historiador e escritor. Em 1972 publicou L’Histoire de l’Afrique Noire, uma referência para estudos e a história da África.
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