OPINIÃO

Artigo: O meio ambiente, o sagrado e o povo preto

Correio Braziliense
postado em 12/06/2021 06:00
 (crédito: Maurenilson Freire/CB/D.A Press)
(crédito: Maurenilson Freire/CB/D.A Press)

Por EDNA ANDRADE — Professora e ceramista, coordenadora Executiva do Fórum de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (Fonsanpotma) do DF e do Entorno e reconhecida como Kota Lembarecimbe da casa de candomblé Bantu Angola Nzo Jimona Dia Nzambi

A temática ambiental tem se destacado nos últimos tempos pelos sinais de alerta que o planeta Terra tem nos dado a todo instante. Os meios de comunicação não precisam fazer esforços em busca de fatos que relacionem os seres humanos a ações perversas contra todo e qualquer ser vivente. Retrocedemos anos-luz na luta pela preservação e recuperação dos ambientes naturais.

Perceber a natureza, como conexão com o sagrado, faz dos povos tradicionais de matriz africana guardiões dos territórios que ocupam, uma vez que a manifestação desse sagrado é reconhecido no elemento terra , no fogo, na água e no ar. Nkissis, orixás e voduns são a manifestação divina da natureza em seus filhos. Essa tamanha responsabilidade, por si só, pressupõe compromisso com o bem-estar de todo o ciclo dessa relação homem, natureza, divindades, numa perspectiva diferente do caos anunciado.

Historicamente, quilombos, terreiros de umbanda e de candomblé são, em suas essências, territórios que, para além da religião, preservam a cultura de nossos antepassados negros e indígenas. São o lugar seguro para a expressão de conhecimentos reconhecidamente valorosos para o lugar de pertencimento ancestral. Muitos desses espaços estão localizados em áreas rurais e sobrevivem ao avanço das cidades e à disputa por territórios. Outros, incrustados em bairros urbanos, resistem aos ataques pela discriminação e intolerância à cultura do povo preto. Têm por missão o acolhimento de toda e qualquer pessoa, independentemente de raça, cor ou orientação sexual. São promotores de saúde coletiva e agentes de proteção ambiental, tão somente pela forma de organização da coletividade. Mas o cenário que temos é o de constante violação dos direitos humanos, apesar das leis de proteção ao conhecimento tradicional e ao território ambiental ainda vigentes.

A constituição do Fórum de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (Fonsanpotma) do DF e do Entorno, em 13 de março deste ano, significa um avanço na organização do povo preto de tradição. Rizoma do Fonsanpotma nacional, presentes em mais 13 estados, com o objetivo de promover discussões e buscar soluções para os conflitos, por meio do diálogo e da proposição de ideias e de políticas públicas para os povos tradicionais. A autodeclaração de pertencimento à nação Bantu, Jeje e Yorubá, inclui o indivíduo neste coletivo que visa discutir a soberania alimentar em sua principal campanha Tradição alimenta, Não violenta, pelo direito dos povos a alimentar-se tradicionalmente em seus territórios. Os responsáveis por essa campanha são os jovens. Nossa juventude é herdeira de toda tradição e, por isso, apostamos na organização e no empoderamento de indivíduos que possam levar adiante nossa cultura, sem deixar de considerar as atualizações necessárias à sobrevivência no universo hostil de uma sociedade excludente.

Sagradas mulheres água é outra importante campanha promovida pelo Fonsanpotma. Não só visa instituir o 2 de fevereiro como feriado nacional pelo dia consagrado à divindade das águas salgadas, como também promover ações de saúde às mulheres, incentivar o cultivo das ervas e plantas nos próprios territórios, buscar parcerias para formações que abram perspectivas para a melhoria na qualidade de vida de mulheres e meninas pretas, por meio de conhecimentos que possam levar à emancipação e à perspectiva de um futuro seguro e saudável e que dialoguem com a tradição.

O Sistema Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social Ubuntu (Sindesu) vem propor a prática da economia solidária, visando a prosperidade das pequenas comunidades. A ideia é que os indivíduos, principalmente, pretos, periféricos, possam ser protagonistas de seus projetos de vida, por meio de uma rede de apoio à produção e ao consumo cooperado. Um banco próprio — Banco Grão, moeda própria — dinheiro, e as cooperativas (Cooptmas).

A expectativa é de que esse conjunto de ideias possa ser construído de maneira coletiva, sistematizado e estruturado em conceitos africanos de comunidade e aquilombamento, valorizando os saberes ancestrais de quem inventou, forjou e modelou as primeiras ferramentas agrícolas — Nkossi ou Ogum, sucedido pela liderança feminina da ativista, Prêmio Nobel da Paz, Wangari Maathai. “Hoje enfrentamos um desafio que exige uma mudança no nosso pensamento, para que a humanidade pare de ameaçar o seu suporte de vida. Somos chamados a ajudar a Terra a curar as suas feridas e, no processo, curar as nossas — a abraçar, de verdade, toda a criação em toda a sua diversidade, beleza e maravilha. Reconhecer que o desenvolvimento sustentável, a democracia e a paz só resultam juntos.”

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