Por JONES LOPES DA SILVA — Jornalista
Passa batido o argumento do Carrefour ao propor indenização de R$ 1 milhão à viúva de João Alberto Freitas, o Nego Beto, espancado e asfixiado até a morte por dois seguranças do supermercado, em 19 de novembro de 2020, em Porto Alegre. A empresa alega que um valor maior abre precedentes. Passados seis meses, Milena Alves aceitou a proposta entre R$ 1,1 milhão e R$ 5 milhões. O valor exato não pode ser divulgado devido ao contrato de confidencialidade.
Passa batido o fato de a rede ter pago o mesmo RS 1 milhão como reparação pela morte da cadela Manchinha numa unidade de Osasco, em 2018. A comparação é descabida. A dúvida é se a empresa considera descabida. O Carrefour adotou iniciativas antirracistas no calor da repercussão dos vídeos da agressão, como aconteceu com as cenas do policial ajoelhado no pescoço de George Floyd, nos Estados Unidos. Além de plano de inclusão, as medidas preveem compromisso dos fornecedores contra a discriminação.
Passa batido também a histórica dupla condenação, no fim de março de 2021, de ex-aluno da Fundação Getulio Vargas por injúria racial, agora acrescida do crime de racismo — inédita na Justiça brasileira, desde a promulgação da lei, em 1989. Neste caso, o condenado postou em grupo do WhatsApp foto de colega negro seguida da frase: “Achei esse escravo aqui no fumódromo. Quem for o dono avisa”.
É espantoso que, durante os 32 anos de uma lei, a Justiça jamais tenha visto crime de racismo. Por 32 anos, magistrados só concluíram por injúria racial — cuja pena é inferior, permite fiança e ainda prevê prescrição. A condenação atual é relevante, pois estabelece jurisprudência e sugere mudança na nossa cultura jurídica. Via de regra, a denúncia racial na delegacia é tratada com resistência, descaso e negacionismo e chega aos tribunais com uma ponta de indiferença e pretensa neutralidade. Funcionam assim os escudos do gargalo estrutural. Na delegacia fica evidente a realidade. Racismo é ideologia.
O caso João Alberto é um dos mais brutais exemplos de racismo dos últimos tempos. Nem por isso a conclusão do grupo de delegados gaúchos responsável pelo inquérito fugiu da moderada injúria racial. Desde o último 20 de novembro, quando o dia de Zumbi e da Consciência Negra amanheceu manchado com o assassinato de João Alberto, vários eventos relacionados a políticas afirmativas se desencadearam. A maioria não ganhou a devida divulgação. Passa batido.
Exemplo disso é a iniciativa de juízes (as) negros (às) do país que há quatro anos promovem encontros nacionais. Em dezembro de 2020, eram 125 integrantes do grupo que sugeriu, e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estuda, proposta de revisão de regras de concursos e política de cotas mais eficiente no Judiciário.
De acordo com levantamento do CNJ, realizado com 11,3 mil magistrados de um total de 18,1 mil no país, 80,3% são brancos e 18,1%, negros (16,5% pardos e 1,6% pretos). No Tribunal de São Paulo, o maior do país, são 42 pretos/pardos contra 2.508 brancos. Há um desembargador negro e um pardo. Não existe desembargadora preta ou parda no TJ paulista. Acrescente-se ao movimento geral as campanhas de conscientização da Frente Nacional Antirracista junto a empresas e da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos junto a seus juristas.
Também passa batido o fato de o Supremo Tribunal Federal (STF), enfim, decidir julgar se mantém a prescrição nos casos de injúria racial. A disposição foi motivada pelo estrondo da morte de João Alberto e logo após o vice-presidente Hamilton Mourão declarar que não existe racismo no Brasil. Apenas três dos 11 ministros votaram até agora. Edson Fachin foi contra a prescrição, Nunes Marques a favor e Alexandre de Moraes pediu vista em dezembro. O julgamento está suspenso.
Passa muito batido o gesto de manifestante que usou o capuz cônico símbolo da Ku Klux Klan e enforcou um boneco negro numa árvore durante ato pró-Bolsonaro, no feriado de 21 de abril, no Parcão, zona nobre de Porto Alegre. Grupos negros e bancada negra municpal registraram a ocorrência policial 255/2021/760205 na Delegacia de Combate à Intolerância. E em resposta, promoveram um protesto no mesmo local. Ministério Público prometeu agir. Quase nada saiu na imprensa local.
No final de 2020, o Observatório do Legislativo Brasileiro divulgou relatório que traz dados sobre a maioria da Câmara Federal ter votado contra pautas da igualdade racial nas legislaturas de 2015 e 2019. Deputados se mostraram mais interessados na redução da maioridade penal de 18 para 16 anos — que atinge a comunidade negra pelas costas. Os invisíveis passam batidos.
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