OPINIÃO

Artigo: Foto da história

Correio Braziliense
postado em 29/06/2021 06:00
 (crédito: Kleber)
(crédito: Kleber)

Por Cristovam Buarque — Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)

O livro Correspondência Intelectual: 1949-2004 mostra a grandiosidade de Celso Furtado ao escrever, reunir, guardar e transportar 15 mil cartas, através do mundo. Quase 300 delas reunidas neste livro editado pela jornalista Rosa Freire D’Aguiar, sua viúva. Nelas percebe-se a força intelectual, ideológica, política e moral de uma geração da qual ele foi um expoente entre pares. Ao ler as cartas nos sentimos em uma mesa rodeada por dezenas de personagens conversando entre eles sobre temas variados.

Os textos deslumbram ao transmitir pedaços das biografias de grandes personalidades; instruem ao mostrar as ideias que desenvolviam na busca de entender o Brasil, enfrentar a tragédia política da ditadura e encontrar caminhos para o desenvolvimento no futuro. Fascina ler as cartas entre Celso Furtado e Roberto Campos, dois notáveis de polos diferentes da política, trocando simpatia e respeito mútuos, descrevendo o nascimento do BNDE e do desenvolvimento brasileiro; outras entristecem ao penetrarmos no dia a dia de personagens históricos falando das dificuldades materiais e psicológicas, da solidão, frustração e esperanças no exílio. Emocionam ao percebermos a solidariedade entre eles na busca ou na oferta de apoio para garantir a sobrevivência, em países e climas distintos, culturas diferentes, idiomas incompreensíveis.

Tocante ler Álvaro Vieira Pinto, desde a Iugoslávia, na véspera do inverno, hospedado em um hotel graças à ajuda de estrangeiros, incapaz de dar aula em um idioma que não entendia, apesar de conhecer oito línguas; tanto quanto ver a carta do Frei Tito que parece uma boia jogada ao mar, em busca de salvação para evitar a morte que ele logo buscaria. Sofremos ao perceber a perda do Brasil devido à ausência desses personagens, impedidos de criar, produzir, construir a nação deles, por terem sido expulsos do país.

São estimulantes as cartas de personagens impedidos de trabalhar no Brasil, mas que academias e governos reconheciam e aproveitavam, como Darcy Ribeiro e Fernando Henrique Cardoso; instrutivos os debates na correspondência com Plínio de Arruda Sampaio e com Hélio Jaguaribe, onde nos surpreende ler Celso Furtado, em fevereiro de 1971, dizendo ao amigo que “boa parte do equipamento que me habituara a utilizar para entender o mundo em torno a mim me parece hoje obsoleto”. A Aníbal Pinto, em maio de 1965, ele diz: “A vida do intelectual em épocas como esta é uma espécie de meia loucura”. Meia loucura que o inspirou ainda por 50 anos nos dando algumas das mais importantes interpretações do Brasil. As cartas trocadas com Ernesto Sabato são inspiradoras ao falar de literatura, nações, famílias e o continente latino-americano; com Thiago de Melo vivemos o espírito da necessidade dele da solidariedade do Celso Furtado.

Ao lado da correspondência com brasileiros, o livro mostra o cosmopolitismo de Celso Furtado respeitado por Raúl Prebisch, Albert Hirschman, Nicholas Kaldor, Ignacy Sachs, Oscar Lounge, Wassily Leontief; filósofos e políticos como Bertrand Russell, Fidel Castro, Robert Kennedy, Henry Kissinger.

As cartas deslumbram, ensinam e emocionam graças à edição de Rosa Freire D’Aguiar, cuja introdução é em si um monumento literário-biográfico. Sem ela, as cartas ficariam guardadas; e quando recuperadas, daqui algumas décadas, não teriam o estilo e a estrutura de conversa ampliada entre pensadores amigos. O Correspondência Intelectual: 1949-2004 é mais que um livro, é uma imensa antena que Celso Furtado usou para captar pedaços de vidas entrelaçadas entre elas e com a história do país; e que o livro agora divulga dando vida àquele instante da história e das biografias de brasileiros espalhados pelo mundo, pensando e agindo pela construção de um Brasil eficiente e justo.

Ao lado da emoção com a foto daquele momento, captada por Celso e divulgada por Rosa, o leitor pensa como o Brasil teria sido diferente se aquele diálogo tivesse ocorrido no país, sem o exílio que os expulsou durante a longa noite de 21 anos, em que foram faróis impedidos de serem vetores.

AAo final da introdução, Rosa Freire D’Aguiar escreve: “A ambição deste volume é, assim, levar ao leitor uma correspondência inédita que, além de revelar destinos individuais, acompanha as peregrinações de um punhado de economistas, intelectuais, políticos, ativistas, cientistas sociais que foram atores e observadores da história na segunda metade do século XX.” Ela conseguiu realizar plenamente a ambição que tinha.

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