Desde 1960

Visto, lido e ouvido — Banquete da fome

Circe Cunha (interina) // circecunha.df@dabr.com.br
postado em 30/06/2021 06:00

Difícil é explicar para qualquer dona de casa, principalmente aquela que vai diariamente ao mercado, ou a outros interessados na questão, as contraditórias razões que levam o nosso país, transformado, segundo a propaganda ufanista do governo, em celeiro que abastece o mundo, a vender internamente os alimentos básicos da dieta dos brasileiros a preços extorsivos e bem acima daqueles cobrados em outros países.

Falar em commodities em terra de famintos equivale a apontar fictícios oásis em meio ao calor árido do deserto. Essa questão ganha ainda mais dramaticidade quando se observa que, do continente, a contemplar, de olhos e estômago vazios, os milhões de toneladas de alimentos, em forma de grãos e proteínas, que todo o ano embarcam em gigantescos navios contêineres rumo ao exterior, estão perfilados, logo na primeira fila, quase 8 milhões de cidadãos que experimentam mais angustiante grau de fome.

Somam-se a estes despossuídos e desesperançosos outros 30 milhões de conterrâneos subnutridos e a caminho do desespero, que veem a comida sumir na linha do horizonte, entre o céu e o mar. Já se disse que o chamado agronegócio não produz propriamente alimentos para quem tem fome de comida, mas lucros para aqueles poucos que têm fome de moeda estrangeira.

A situação fica ainda mais surreal quando entram na discussão elementos como balança comercial superavitária e outros dados econômicos abstratos que, entra e sai governo, não enchem a barriga de nossa gente. Alguns estudos, como o elaborado pelo pesquisador e professor do Departamento de Economia do Campos de Sorocaba da Universidade Federal de São Carlos (SP) Danilo Rolim Dias de Aguiar, revelam que a produção de alimentos do nosso país seria mais do que suficiente para nutrir, com fartura, toda a população brasileira de aproximadamente 210 milhões de habitantes.

O que ocorre no mundo paralelo do nosso agrobusiness não tem efeito positivo algum sobre uma situação famélica de milhões de brasileiros, que cresce ano a ano. Mais perturbador é verificar que o aumento seguido da produção de grãos e proteína, realizado em desfavor do meio ambiente, é acompanhado de perto pelo aumento no número de famílias em situação de fome e de desnutrição. Não se sabe, nem o próprio governo explica, em que ponto as linhas ascendentes desse gráfico antilógico e se cruzam e em que patamar irão repousar.

Se, para a classe média, que dia a dia vai vendo sua renda minguar essa já é uma situação irracional, para aqueles que não ligam e não entendem o mundo dos dados da economia, essa é uma situação limite, capaz de conduzir o país para o beco sem saída da instabilidade social. Obviamente que nesse quadro desolador da fome e da desnutrição, que nada mais é do que um estágio anterior da falta total de alimentos, há ainda fatores, como a desigualdade e a concentração absurda de renda, o desperdício e a perda de alimentos, além da má gerência em programas de assistência nessa área, todos eles voltados para atender interesses político e eleitoral momentâneos e que não vão ao centro do problema.

Há, ainda, evidências que transformam todo esse cenário distópico em uma espécie de filme felliniano, quando se verifica que o Brasil ocupa o quinto lugar mundial no quesito obesidade. Talvez essa triste ironia possa explicar o fato de sermos encarados como um país impróprio para amadores e inocentes de todo o tipo. Ainda mais quando se transforma o total de alimentos exportados anualmente pelo Brasil em calorias. Segundo Dias de Aguiar, essa quantidade daria para alimentar 700 milhões de indivíduos, entre famélicos, obesos e aquela dona de casa para quem a explicação dos porquês já não são necessários e de nada adiantariam.

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