JAIME PINSKY Historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto
Viver em sociedade tem vantagens óbvias: se você vivesse sozinho, ou apenas com sua família, no meio do mato, não teria alguns confortos óbvios. Em um bom número de casas brasileiras, basta abrir a torneira para ter água corrente, apertar a descarga e saber que os dejetos estão sendo levados para longe, apertar um botão e ter luz. Em muitos bairros de cidades brasileiras, as ruas são asfaltadas, um selecionado número de calçadas é transitável, muitas escolas são frequentáveis, a segurança é razoável. Parques têm funcionários que, eventualmente, aparam a grama, o lixo é retirado por garis que trabalham em caminhões especializados, o transporte coletivo funciona, assim como outros tantos serviços. Em troca desses serviços, o cidadão paga impostos e se dispõe a se submeter a regras, sejam elas escritas ou convencionais.
Algumas regras sociais são consideradas tão fundamentais que chegam a constar de constituições. Por exemplo, qual língua deve-se falar? Em diferentes grupos nacionais convenciona-se falar uma língua própria (como os finlandeses, os lituanos, os israelenses, os húngaros, por exemplo, que têm línguas muito particulares), em outros emprestou-se línguas de povos colonizadores (como fizeram os brasileiros, os australianos, os argentinos etc.). Em algumas nações, a Justiça baseia-se no direito romano, em outras nações no direito consuetudinário. Em alguns países o trânsito flui do lado direito, em outros (como a Inglaterra e o Japão) utiliza-se o outro lado. O importante é estabelecer a regra e cumpri-la: sempre existirão defensores de regras estas ou aquelas.
Claro que alguns países levam as convenções muito a sério. Outros, nem tanto. Por exemplo, beber e dirigir pode? No Brasil, não pode, só que pode. Explicando melhor (?): por lei, aqui não se pode ingerir nenhuma bebida alcoólica e depois sair dirigindo. Nada. Não há tolerância alguma, como em alguns lugares. Se você for pego... não acontece nada, uma vez que você não é obrigado a fazer o teste do bafômetro: uma regra de ouro que nossos ilustres legisladores estabeleceram é que ninguém é obrigado a produzir provas contra si próprio, e como o motorista bebum produziria prova de sua condição de alcoólatra ao fazer a tal prova, o camarada deixa de ser obrigado a fazer a prova.
Em resumo, não pode, só que pode. Entenderam? Ainda não? Vamos exemplificar. Se você está guiando seu carro alemão, pesando mais de uma tonelada, às duas da madrugada, entra derrapando em uma rua em que entregadores de pizza e refrigerantes encontram-se parados esperando fazer alguma entrega e faturar algum e mata um ou dois garotos, que estavam na calçada esperando um trabalho; se você não se dá sequer o trabalho de chamar socorro. Se você é retida no local até a chegada da Polícia. Se você é levada até a delegacia e fica retida por algumas horas.
Se tudo isso acontecer, mesmo você não tendo chamado socorro, mesmo você estando em velocidade absurda, mesmo você tendo matado pobres inocentes trabalhadores, mesmo você supostamente estando alcoolizado... você não precisa comprovar sua situação etílica e, é claro, não fica retida na delegacia, desde que consiga arranjar 20 mil reais em troca de sua liberdade. Assim funciona a coisa no Brasil. Afinal, o (ou a) motorista comprou o carro e, pelo visto, achou que, como dono dele, tinha o direito de guiá-lo da forma que julgasse mais adequada. Talvez o coitado (ou a coitada) estivesse nervoso (a), irritado (a) e seja muito razoável abusar um pouco da velocidade e do álcool (desculpe, não temos prova da condição etílica dela).
“Isso é meu, uso como quiser”, me lembra um antigo vizinho que adorava dar festas em seu apartamento, festas regadas a muito vinho e som bem alto. Eu morava três andares abaixo dele, o que não impedia a manifestação nada sutil de seu formidável sistema sonoro, que ecoava na minha caixa torácica. Como se fossem um marca-passo, os poderosos graves orientavam minha frequência cardíaca. O problema maior eram as músicas (músicas?) muito rápidas, que quase faziam meu pobre coração saltar, desesperado, do local em que se encontrava aninhado. Em uma reunião de condomínio, finalmente, consegui que se recomendasse moderação, pelo menos depois das 22 horas.
O simpático vizinho não se conformava. Afinal, dizia ele, “comprei e paguei meu apartamento, lá dentro posso fazer o que quiser”. Viver em sociedade, meu amigo, implica em direitos e deveres, é aceitar formal ou informalmente um contrato social. Não violar o direito do outro é pedra basilar desse contrato. A não ser em sociedades em que todos, supostamente, são iguais, só que alguns são mais iguais...
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