Por ANTÔNIO RANGEL BANDEIRA — Sociólogo, ex-consultor da Organização das Nações Unidas (ONU) e do Viva Rio, autor de Armas para quê? (Editora LeYa)
O Supremo Tribunal Federal está para votar a nulidade de alguns decretos presidenciais retirando o controle da venda de armas e munições. Para pressioná-lo, armamentistas estão organizando ato em favor dos decretos. Desde que sejam pacíficos, são atos legítimos de manifestação da opinião. Mas vão beneficiar o país?
A ministra Rosa Weber suspendeu alguns dos vários decretos, mas outros continuam em vigência, e não são menos danosos. Está suspenso, por exemplo, o que trata da idade mínima para a prática de tiro nos clubes. Na Lei de Controle de Armas, popularmente conhecida como Estatuto do Desarmamento, em cuja proposta colaborei, consideramos que os que mais matam com arma de fogo, e mais morrem, são os jovens, numa proporção quatro vezes maior que a população em geral (Small Arms Survey). Por isso, estabelecemos a idade mínima de 21 anos para a compra de armas.
Mas considerando que esportistas devem começar a treinar mais cedo, reduzimos para 18 anos a idade mínima, com autorização do representante legal (geralmente os pais), e uso das armas desse representante, para haver controle. O decreto presidencial reduz a idade para 14 anos. Não tem idade para dirigir, mas poderá atirar. Dispensa autorização paterna, permite que o jovem utilize qualquer outra arma, e não restringe a prática aos desportistas, mas a qualquer jovem que queira se “recrear”. Como outro decreto retira do Exército o controle sobre os CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores), hoje praticam nos clubes de tiro milicianos e qualquer um que pague. Controle mínimo.
O que se pretende? Que se repita no país o drama vivido nos Estados Unidos, onde o pouco controle das armas leva a uma média de 12,5 massacres por mês (Gun Research Archives)? Lá consideram massacre o assassinato de quatro pessoas ou mais. A maioria em escolas, igrejas, shows e supermercados. Em estados como a Virgínia, um menino de 13 anos não pode dirigir, comprar cigarro, nem revista Playboy, mas pode comprar fuzil de guerra. O resultado no país é a média de cinco pais mortos com armas de fogo por seus próprios filhos por semana, como resposta a castigos ou acidentes (Kathleen Heide, University of Southern California).
A autorização de portar arma na rua, segundo a nossa lei, só é concedida pela Polícia Federal (PF) em casos excepcionais, de risco de vida, e a norma é a proibição. Isso constitui o coração da nossa lei, admirada no exterior e já copiada por oito países. Pesquisa de opinião do IPEC, de 2021, constatou que 86% dos brasileiros estão de acordo com essa proibição. Mas outro decreto presidencial suspenso permite que os atiradores andem armados de casa até o clube, independentemente do trajeto. Podem estar muito longe, e alegar que estavam indo para o clube. Na Argentina, ao contrário, as armas do atirador ficam trancadas em cofres dentro do clube.
O decreto, uma forma velada de porte de armas disfarçado, está fazendo com que milhares de indivíduos, que nada têm de atirador esportivo, se matriculem como atiradores só para poderem andar armados, burlando a lei. Os atiradores passaram em dois anos de 171.979 para 356.054. Os clubes se tornaram tão lucrativos que passaram de 151 para 1.345 em dois anos, cheios de milicianos e delinquentes que praticam tiro com fuzis, e não com as armas de pequeno calibre próprias do esporte olímpico, para constrangimento dos verdadeiros desportistas.
Citei apenas duas mudanças, em mais de 30, propostas pelos decretos. Ferem de morte o Estatuto do Desarmamento, que em 18 anos salvou a vida de 275.476 brasileiros (Daniel Cerqueira, IPEA). Mas as leis estão acima de decretos, e não podem ser mudadas por esses últimos. Portanto, são decretos ilegais, além de inconstitucionais, porque afrontam o Congresso Nacional em sua atribuição de votar as leis.
A manifestação dos armamentistas quer promover o retrocesso contra a lei e a tomada democrática de decisões. Celebram as armas em desrespeito ao mais de meio milhão de mortos pela pandemia. Confiamos em que o STF ouvirá a voz da ciência, da eficácia do Estatuto do Desarmamento na proteção do povo, e de mais de 80% da população que se manifestaram pelo controle de armas (IPEC) e pela celebração da vida. Mais vacinas e menos armas!
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