Por Humberto Casagrande — CEO do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE)
A julgar pelas repetidas manifestações racistas a que assistimos, nós nos encontramos numa perturbadora encruzilhada: enfrentá-las com coragem, empenho e convicção para neutralizá-las em curto prazo e tentar eliminá-las numa segunda etapa; ou permitir a instalação de mais uma frente divisionista de polarização, com gravíssimas consequências para nossa unidade e paz sociais. Não se trata de mais um embate político-ideológico, como vem ocorrendo no momento e que pode ser resolvido numa eleição, mas de uma ferida aberta secularmente e pronta a sangrar indefinidamente, como ocorre em outros países.
O nosso preconceito racial é seletivo, pois atinge apenas brasileiros de ascendência africana. Nada existe em relação aos descendentes de portugueses, índios, italianos, árabes e orientais que também participaram da nossa conformação étnico-racial. Salta à vista, portanto, que a origem do problema está na escravidão e suas circunstâncias. Um ligeiro sobrevoo sobre o passado, à luz de variados estudos históricos, confirma essa possibilidade.
Em 1530, apenas 30 anos após o descobrimento, os primeiros navios traziam escravos para os canaviais do Nordeste, pois o açúcar era especiaria ambicionada. A mão de obra competente, pois a tentativa com índios fracassara, foi buscada na África entre populações vulneráveis ao predomínio branco europeu. Era prático e rentável, uma vez que a produção de riquezas se dava a troco de comida, roupa barata e teto.
Mas havia um empecilho teológico: a escravidão contrariava os princípios de fraternidade anunciados por Cristo. Para aplacar as dores de consciência, foi necessário desqualificar os africanos, algo relativamente fácil: eles seriam meros gentios desconhecedores da palavra de Deus e das normas civilizatórias dos dominadores. De certo modo, o quadro justificava os castigos físicos e psicológicos impostos àqueles que, legitimamente, buscavam recuperar a liberdade. Nesse sentido, as vantagens econômicas propiciadas pela escravidão explicam sua manutenção a ferro e fogo por três dos cinco séculos da existência do país.
Uma vivência de 300 anos não se apaga com uma passada de borracha. De um lado, sobrevive a memória de sofrimentos, injustiças e ressentimentos centenários. De outro, persistem visões e comportamentos estratificados na sociedade e, como sempre ocorre com preconceitos, o mal ganha ares de virtude. Uma pesquisa do longínquo ano de 1888 revela que, à época, 97% dos brasileiros garantiam não ter preconceito racial, não obstante 98% afirmarem conhecer alguém que o tinha. Em 1995, a contradição se mantém. Em uma pesquisa da Folha de S.Paulo, 89% dos entrevistados afirmavam que havia preconceito contra negros no Brasil, mas apenas 10% admitiam tê-lo. O censo de 2010 apontou 16 milhões de brasileiros vivendo em extrema pobreza (R$ 70 mensais). Desses, 4,5 milhões eram brancos e 11,5 milhões eram negros. Tal disparidade tem muito a ensinar sobre o triângulo desigualdade, preconceito racial e oportunidades.
Segundo o informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil (IBGE/2019), os negros continuam a trabalhar, estudar e ganhar menos do que os brancos, sendo que no final de 2020 a taxa de desemprego entre os negros bate em 17%, contra 11% dos brancos. No quesito maior renda per capita, o fosso se alarga: os brancos representam 70% contra 27% dos negros. Quando se trata de menor rendimento, a relação se inverte: 75,2% de negros contra 23,7 de brancos.
Dois obstáculos devem ser enfrentados para assegurar o sucesso das crescentes — embora insuficientes — ações contra o preconceito racial: a baixa escolaridade e as elevadas taxas de desocupação ou concentração de oportunidades de trabalho em atividades informais e de baixa remuneração média. Com minha experiência em inclusão socioprofissional dos jovens, não hesito em afirmar que a diversidade no mercado de trabalho deve ser um dos focos da luta contra o racismo, que vem ganhando fôlego com a maior — embora ainda longe do ideal — presença de negros nas artes, nos esportes, na política, nas universidades, nas empresas e em outras atividades.
É uma luta que, na verdade, mobiliza lideranças e comunidades negras, mas também deve unir todos os que veem na diversidade o caminho para construir um país mais justo, mais solidário e mais feliz para todos, num processo que nasce da consciência de que vidas negras não somente importam, mas, sobretudo, merecem respeito.
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.