OPINIÃO

Arquitetura da saudade: uma década sem Niemeyer

Correio Braziliense
postado em 20/07/2021 06:00 / atualizado em 20/07/2021 08:32
 (crédito: Ricardo Fasanello/Divulgacao)
(crédito: Ricardo Fasanello/Divulgacao)

Por Paulo Sérgio Niemeyer — Arquiteto, presidente do Instituto Niemeyer conselheiro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-RJ)

Em 2022 completam-se 10 anos da morte de Oscar Niemeyer, meu bisavô, o “Dindinho”, era assim que nós o chamávamos. Lembranças, afetos, saudade.

Durante a ditadura militar no Brasil em 1964, invadiram a sua editora, que publicava a Revista Módulo, dedicada à arquitetura e às artes. A permanência dele no Brasil tornou-se impossível por causa das torturas e prisões que atingiram seus amigos. Para se proteger, em 1967 Niemeyer decidiu viver em Paris, onde abriu seu escritório na avenida Champs Élysées. Minha mãe, Ana Elisa Niemeyer, sua neta também arquiteta, o acompanhou, e eu nasci na capital francesa. Naturalizei-me brasileiro e em 2012 consegui minha certidão de nascimento. Foi emocionante conhecer a maternidade onde nasci, em um país longe da pátria dos meus pais e do meu bisa Oscar.

Convivi com Oscar Niemeyer, como bisneto e como seu colega de profissão.Trabalhei em vários projetos com ele, principalmente no Caminho Niemeyer, em Niterói (RJ) .Nosso contato era diário.Ele valorizava o debate sobre as cidades, e foi para promover essas ações que fundamos o Instituto Niemeyer, que tem como objetivos: promover a cultura, a conservação dos patrimônios históricos; estudar e pesquisar atividades que visem o aprimoramento profissional. Depois que ele partiu, assumi o compromisso de divulgar sua obra e seu legado.

Já em seu tempo Niemeyer foi vanguarda. O precursor da arquitetura do cimento aparente. A escola modernista com os vãos livres, a integração com o meio ambiente e as janelas amplas. Niemeyer é referência mundial para estudantes e profissionais, que o reconhecem como mestre da arquitetura.

Ao lado dele, um dia nunca era igual ao outro. O escritório de Niemeyer era uma espécie de “embaixada cultural”, frequentado por personalidades brasileiras e internacionais, artistas, guerrilheiros, integrantes do MST (Movimento dos Sem Terra), e embaixadores. Para trabalhar na recepção ele só contratava moradores da favela da Rocinha, assim criou uma cota para dar oportunidade a esses jovens. Mas exigia uma condição: a cada mês, o funcionário tinha que ler um livro e contar para ele o que tinha aprendido. Esse lado humano dele me encantava. Ele se referia aos excluídos com fraternidade, tanto que a frase que ele mais gostava de repetir era: “A vida é bastante injusta com os mais pobres”. Esse era o meu amado bivô: justo, solidário, repleto de sensibilidade social.

Em 2022 completam-se 10 anos da morte de Oscar Niemeyer
Em 2022 completam-se 10 anos da morte de Oscar Niemeyer (foto: Arquivo Público do DF)

Niemeyer era um homem muito original em suas atitudes. Ao sentir certa resistência na família, não titubeou em se casar escondido. Organizou tudo secretamente. O casamento aconteceu em sua casa, em uma tarde, num ambiente simples, apenas com um juiz de paz e dois advogados. Como eu morava com ele, fui o único da família presente na cerimônia do seu casamento, aos 99 anos, com a sua secretária, D. Vera Lúcia Guimarães, em 2006. Esse era o meu avô Niemeyer.

Em nossas últimas conversas, perguntei: Dindinho, o que é arte? E ele me respondeu, com aquela voz calma e pausada: “É tudo que cria surpresa e beleza, é um objeto, que você nunca viu antes, uma fala qualquer que nunca ouviu igual, então você se surpreende. E se você tem sensibilidade, você para e aprecia. Arte é invenção. A arquitetura é invenção”. Essa definição me faz lembrar de Brasília. No território livre da internet, leio comentários atribuídos a ele que são falsos. Por exemplo, li que Niemeyer se arrependeu de ter projetado Brasília porque ficou decepcionado com a atuação negativa da classe política nacional. Posso garantir que essa afirmação é falsa, pois Niemeyer amava e se orgulhava da capital federal, que ele viu nascer, e, vigilante, sempre defendeu seu projeto original. Nas palavras dele, “… quem for a Brasília, pode gostar ou não dos palácios, mas não pode dizer que viu antes coisa parecida. E arquitetura é isso — invenção”.

 Oscar Niemeyer em foto tirada em fevereiro de 1977
Oscar Niemeyer em foto tirada em fevereiro de 1977 (foto: STAFF/AFP)

Meu bisavô viveu 104 anos, trabalhou muito, e se divertiu muito também. Mesmo centenário, ia diariamente bater ponto no escritório e me convocava até aos domingos.

Fico imaginando o que diria e faria Niemeyer se, uma década após sua partida, voltasse a viver no Brasil atual. Não tenho autorização para falar em seu nome, mas posso afirmar que ele estaria protestando, defendendo os direitos do povo, lutando contra o imperialismo norte-americano.

Saudade concreta do meu bisavô arquiteto!

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  • Oscar Niemeyer.
    Oscar Niemeyer. Foto: Arquivo Público do DF
  •  Oscar Niemeyer em foto tirada em fevereiro de 1977
    Oscar Niemeyer em foto tirada em fevereiro de 1977 Foto: STAFF/AFP
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