Por RICARDO NOGUEIRA VIANA — Delegado-chefe da 6º DP. Professor de educação física
Após um ano de atraso, no próximo dia 23, o mundo tentará desviar o foco das mazelas assimiladas pela covid-19 com o intuito de assistir aos 32º Jogos Olímpicos da era moderna, que será sediado na cidade de Tóquio, no Japão. Ao todo, 11 mil atletas de 206 países estarão confinados durante 15 dias em busca de melhores resultados que agreguem medalhas.
A história dos jogos, que deveria ser dotada de políticas afirmativas entre os povos, desde a primeira edição, em 1896, é dotada de preconceito, principalmente relacionado ao gênero. Mesmo com meio milhão de mortos e problemas internos em razão da gestão da pandemia, o Brasil — capitaneado pela judoca afrodescendente Ketleyn Quadros e Bruninho — do vôlei, chegará ao evento com mais de três centenas de atletas os quais competirão em 35 modalidades.
A presença feminina nos jogos era proibida, não só como atletas, mas também como espectadoras. Somente nos jogos de 1900, em Paris, tivemos a primeira participação feminina, sendo que apenas 2,2 % dos atletas eram mulheres, e elas figuravam como participantes, ou seja, não eram premiadas. O responsável pela reativação do evento, o francês Pierre de Coubertin, bradou: “É indecente ver mulheres torcendo-se no exercício físico do esporte”. Dali em diante, elas vieram driblando adversidades e galgando os seus espaços até conseguirem sair de uma total exclusão para uma participação ativa na atualidade. Nos jogos que hão de vir, 48% dos atletas são mulheres. A primeira brasileira a disputar a competição foi a nadadora Maria Lenk, em 1932, na natação.
Ostentando a nossa bandeira, estarão Bruno Mossa Rezende, o Bruninho, levantador da vitoriosa Seleção Masculina de Vôlei, que conquistou três medalhas olímpicas, e dispensa apresentações. Quanto à Ketleyn Quadros, brasiliense, nascida em Ceilândia, talvez não tão conhecida como seu par, a faixa preta foi terceira colocada nas Olimpíadas de Pequim em 2008, e invoco um adjetivo para caracterizá-la: a primeira. Sim, ela foi a primeira candanga a compor uma equipe olímpica do judô, primeira mulher a ganhar uma medalha em esportes individuais para o Brasil e, como expoente, a primeira mulher negra a portar a bandeira brasileira na abertura dos jogos olímpicos.
Sob a argumentação da filósofa Djamila Ribeiro, pode-se se dizer que a judoca está exercendo o seu lugar de fala. Ao estar à frente da delegação, a brasiliense estará rompendo barreiras e ecoando os anseios e agruras vividas pelo povo negro, escravizado e subalternizado no Brasil. Não haverá discursos, tampouco contestações, mas representatividade.
Atrás da bandeira brasileira, hasteada por Ketleyn, estarão retratados todos os brasileiros, sejam os presentes ou os mais de 540 mil que faleceram diante da pandemia, como também todas as mulheres, em especial as negras, que, embora sejam maioria na população, suportam baixos salários, pífias qualificações, desemprego, violências domésticas e a desídia do poder público.
O mundo percebeu que o rastro de destruição deixado pelo vírus ainda estará presente em um futuro próximo, motivo pelo qual a humanidade tenta caminhar de forma letárgica em prol de uma possível normalidade. Coubertin foi sexista e misógino ao restringir as competições ao universo masculino. O esporte, como expressão do ser, dogma do movimento humano, mesmo o olímpico, mais conhecido como de excelência, deve focar não só em resultados, mas em transmitir valores, promover agregação entre os povos visando eliminar qualquer forma de preconceito, seja ele relacionado a origem, gênero, cor, idade ou raça. Rogamos que os brasileiros interpretem o sorriso e os passos firmes da faixa preta como uma mensagem de respeito a todos os afro-brasileiros, em especial às mulheres negras que contribuíram diretamente para formação da nossa identidade.
Acima da escolhida, estará o símbolo da nossa bandeira, que refletirá ao mundo o binômio — ordem e progresso — reverberando e almejando um país vacinado, que respeite as diferenças na medida daqueles que se desigualam e que saiba buscar e alicerçar os menos favorecidos promovendo o bem de todos e extirpando todas as formas de discriminação. Rogamos à Ketleyn, sucesso no judô, mas independentemente de medalhas, a sua caminhada, liderando a delegação brasileira, ditará de forma silenciosa, mas ostensiva, que o Brasil também é negro. Sankofa!
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