ANDRÉ GUSTAVO STUMPF*
Se algum mérito existe na administração Bolsonaro é o de ter levado a atividade política a seu nível mais baixo desde que o Brasil se tornou independente. O presidente não conhece os limites da convivência civilizada entre cidadãos, as fronteiras da coexistência de antagônicos no mesmo espaço, além de desprezar qualquer vestígio de boa educação no relacionamento com seus semelhantes. Nos últimos dias, ultrapassou os limites conhecidos ao discutir decisões do Supremo Tribunal Federal e tentar desqualificar seus ministros.
O presidente entende que tem a última palavra em todas as matérias. Ele discorre sobre vacinas, cloroquina, motociclismo e até relações com a China e com Israel. Compromete negociações comerciais pesadas sem o menor constrangimento. Confraterniza com nazistas. E mexe no próprio governo sem qualquer conexão com sua eleição, com seus correligionários ou seguidores. Desembarca qualquer um sem piedade, nem medir consequências.
Ele não pertence a nenhum partido, nunca pertenceu. Passou por vários deles sempre em busca de uma posição razoável para lhe garantir a reeleição. Funcionou por sete mandatos até que surgiu o “abra-te, Sésamo” de 2018, cenário eleitoral sem precedentes que provavelmente nunca mais ocorrerá. Foi eleito um presidente da República sem projeto, sem partido, sem assessoria, sem quadros, que sustentou ideias religiosas, negacionistas, reacionárias quando o antigo regime desmoronou sob pesadas denúncias de corrupção. Ele venceu ao contrário. Seus competidores perderam para a necessidade de realizar profunda faxina no sistema. Seu porta-estandarte era Sergio Moro.
Moro andou na prancha e foi jogado ao mar. Os militares da primeira hora também marcharam organizadamente para o mergulho fatal. O esforço atual é no sentido de embrulhar as Forças Armadas no pacote com que pretende constranger o país. Jogar militar contra militar. Isso se resolve à medida que os fardados, eles mesmos, se desgastem diante da opinião pública. Em qualquer pesquisa sobre quais as instituições mais confiáveis no Brasil, aparecem em primeiro ou segundo lugar as Forças Armadas. Depois da Igreja. Ou vice-versa. Em seguida, os bombeiros.
Militares, que gostam de pensar a longo prazo e desenhar cenários futuros, estão ante o desafio jamais colocado diante deles na história do país. O Brasil moderno, aquele que surgiu após a Revolução de Trinta, é moldado pelos tenentes que depuseram a República Velha e se alinharam com Getúlio Vargas. O país industrializado começa a emergir ali. Depois surgiu JK, com o processo de interiorização do Brasil, da abertura de estradas, Brasília e da construção de hidrelétricas. A indústria automobilística desembarcou aqui porque havia produção nacional de aço, resultado do acordo de Getúlio Vargas com Franklin Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, como pagamento pela cessão da base de Parnamirim, no Rio Grande do Norte, fundamental para o esforço de guerra. A U.S. Steel, norte-americana, transferiu a tecnologia para construção da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, noestado do Rio de Janeiro.
O movimento de 1964 decorre dessa longa preparação para o exercício do poder. Alguns de seus líderes estavam entre os tenentes nas décadas de 1920 e 1930. E na oposição, também. Luís Carlos Prestes foi tenente. Depois de marchar com a coluna, que levou seu nome por metade do Brasil, ele se exilou em Buenos Aires, onde confraternizou com os comunistas. Dali foi para Moscou. Os militares, no Brasil, desfrutaram nos últimos decênios de reconhecimento por sua capacidade de organizar governos e produzir o desenvolvimento. Destruir esse conceito significa desmontar um dogma brasileiro e deixar o país mais perto dos arrivistas de plantão.
O Brasil não possui partidos políticos definidos, nem confiáveis. Eles se modificam ao sabor das conveniências. A Igreja Católica, que é parte integrante da história do país, anda varejada por denúncias de todos os tipos, desde abusos sexuais até desvios financeiros pesados. Restam poucas luzes no cenário das referências brasileiras. A cada erro de um Pazuello, cai mais uma pedra da confiança nacional. Equívocos de gestão, problemas na condução de políticas públicas fazem desmoronar a confiança nos militares. Caso se envolvam em desvios constitucionais, o país poderá sair do trilho e mergulhar no caminho da quartelada latino-americana, no estilo chavista, que destruiu a outrora próspera Venezuela.
* Jornalista (andregustavo10@terra.com.br)
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