Em 1770, uma mulher negra, mãe, escravizada escreveu uma carta endereçada ao governador da capitania do Piauí. O nome dela? Esperança Garcia! O documento histórico é considerado uma das primeiras petições do direito brasileiro de que se tem notícia, reconhecida pela Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Piauí. O dia 6 de Setembro, data do envio da carta, é comemorado como o Dia Estadual da Consciência Negra no Piauí.
Ela é um símbolo da luta por direitos no contexto do Brasil escravocrata no século 18 e compõe parte da identidade histórica do Brasil. Esse documento foi reconhecido pela Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Piauí, em setembro de 2017, duzentos e quarenta e sete anos depois, como a primeira petição, e Esperança Garcia, como a primeira advogada do Estado do Piauí.
Da mesma forma, Luiz Gonzaga de Pinto Gama, patrono da abolição da escravidão do Brasil, foi reconhecido como advogado pela Ordem do Advogado do Brasil 133 anos depois de sua morte, pelos serviços que prestou nos tribunais na libertação de escravos. Analfabeto até os 17 anos de idade, obteve a própria libertação judicialmente, pois havia sido escravizado aos 10 anos, mesmo tendo nascido de pais libertos. Aos 29 anos, militava ativamente na Justiça Brasileira e era reconhecido como um autor e pensador.
Myrthes Gomes de Campos, por sua vez, foi a primeira mulher a alcançar o direito de exercer a profissão de advogada. Formada em 1898, só obteve o direito de exercer a profissão de advogada oito anos depois, conquistando a absolvição do seu cliente em um Tribunal do Júri, num dos primeiros casos em que atuou. Com isso, Myrthes mostrou de forma enfática a qualidade daqueles que são considerados incapazes pelo senso comum de sua época.
A advocacia brasileira é repleta de personagens que refletem as atitudes e convicções de Esperança, Luiz e Myrthes. São histórias pouco conhecidas e quase nunca registradas, mas expressam a coragem, a dedicação e a determinação de advogadas e advogadas todos os dias na Justiça brasileira e fora dela. São indivíduos que não aceitam um não como resposta, que insistem na defesa do seu cliente e procuram promover a paz social e pessoal, garantindo a satisfação na busca da Justiça.
Essas pessoas, mesmo não tendo a notoriedade de uma Esperança, de um Luiz ou de uma Myrthes, acabam igualmente por marcar a história da advocacia brasileira e, no exercício diário da profissão, conseguem influenciar o desenvolvimento do nosso sistema de Justiça. São pessoas que imprimem no imaginário da sociedade a compreensão profunda da Justiça como uma estrela a nos orientar em mares revoltos.
Vivemos um tempo de omissões. Há aqueles que, no Distrito Federal, acham que a representação de classe deve ter características gremiais e beneficentes. São convicções que podem conviver com uma democracia ou com uma ditadura, pois acreditam que, para apoiar a advocacia, é suficiente distribuir cestas básicas, mas é incapaz de entregar ao advogado e à advogada o que lhe é essencial: dignidade profissional e pessoal. É a dignidade de quem supera os limites materiais, institucionais e culturais do seu tempo, para impor-se com coragem ao descaso dos juízes e autoridades do Estado. É a dignidade conquistada e não concedida graciosamente e, por isso, difícil de ser expurgada.
Uma Ordem dos Advogados deve estar presente no dia a dia dos advogados para auxiliá-los a alcançar um mínimo existencial e profissional que os dignifique. Promover apenas o assistencialismo é perpetuar a precariedade profissional. Além disso, assim como Esperança, Luiz e Myrthes, não é possível se conformar com o status quo institucional ou omitir-se em relação àqueles que atacam a democracia e o Estado de direito. Não existe advocacia possível em uma sociedade sem o respeito ao direito — sobra apenas do desejo do poderoso da ocasião.
Portanto, lutar hoje pelos advogados e advogadas é muito mais do que fazer obras, entregar salas ou doar cestas básicas. É agir com determinação e dedicação na construção de uma profissão que defenda o Estado de Direito e a Justiça, bem como aqueles que escolhem um advogado como seu representante perante o Estado. A luta pelo Estado de Direito ocorre diariamente nos tribunais, nos corredores dos órgãos governamentais e nas salas de aula. É o respeito a direitos, aos cidadãos e aos desvalidos. É o exercício altivo e corajoso contra o desdém, a preguiça, o desrespeito e a arrogância.
Como disse Sobral Pinto, “A advocacia não é profissão de covardes”, e a cada um que elege esta profissão como vocação é indispensável ter o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil de forma efetiva, corajosa e dedicada. Que Esperança Garcia, Luiz Gama e Myrthes Gomes de Campos sejam sempre lembrados e comemorados. E que a advocacia siga-lhes o exemplo.
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