ALYSSON PAOLINELLI* E ANTONIO LICIO**
A pergunta foi levantada pelo economista americano Lester Brown em seu livro, de 1995, Who Will Feed China, e permeou grandes discussões mundiais desde então, prevendo-se fome para esse povo, incapaz, que seria de se autoabastecer de alimentos.
No momento, alguns analistas mais radicais chegam às raias do extremismo lançando preparativos contra uma possível invasão chinesa ao Brasil para garantir seus níveis alimentares que estariam à beira do colapso pela exaustão de seus recursos naturais: terra, água e climas favoráveis. Nada melhor do que o tempo para avaliação de previsões futurísticas. Passados 25 anos, cabe aprofundar sobre o que efetivamente ocorreu com a agricultura chinesa nesse período, sua capacidade futura de autoabastecimento e possíveis desequilíbrios estruturais nos mercados mundiais de alimentos.
De fato, os chineses sofreram crises recorrentes de produção/consumo alimentar devido a secas e enchentes que devastaram sua produção agrícola, sendo a mais notável, entre 1959 e 1961, quando seu líder Mao Tse Tung implementou reformas políticas que desestruturaram a produção e teriam levado à morte 30 milhões de chineses. Todavia, a partir de 1978, Deng Xiaoping, segundo homem na hierarquia política e substituto de Mao, levou a efeito outras reformas. Desta vez, ao contrário de seu antecessor, Xiaoping liberalizou as relações econômicas no sentido da economia de mercado capitalista.
Seus efeitos notáveis se fazem sentir até hoje, mas, de início, se deram exatamente sobre o setor mais prioritário: a produção de alimentos. A China planta atualmente 185 milhões de hectares (ha) de lavouras (Índia, 210 milhões; Estados Unidos, 100 milhões; e Brasil, 80 milhões). Antes das reformas de 1978, os chineses plantavam 145 milhões.
Agregou, portanto, 40 milhões e logrou notáveis sucessos em produtividades, tanto no milho quanto no arroz, suas maiores fontes energéticas, principalmente via irrigação (65 milhões de hectares irrigados contra 7 milhões no Brasil). Resultado: sua produção de milho saltou de 50 milhões de toneladas, em 1976, para 260 milhões em 2019 (superada somente pelos Estados Unidos, 360 milhões de toneladas); no arroz, de 130 milhões de toneladas para 220 milhões de toneladas.
Portanto, a primeira parte da pergunta original foi respondida: quem alimentou a China até os anos recentes foi a própria China, por meio de reformas estruturais econômicas que propiciaram notável resposta produtiva.
E o porvir ? Lamentavelmente, tudo indica que, a partir de 2015, a China parece ter esgotado sua fronteira agrícola, de acordo com o Economic Research Service/USDA, assim como de expandir sua irrigação. Mas sua renda e Produto Interno Bruto (PIB) continuam a crescer, trazendo consigo maiores demandas por alimentos mais sofisticados, como carnes, leites e ovos (proteínas animais), frutas e hortaliças.
Ocorre que não se produz mais proteínas animais sem um grãozinho mágico chamado “soja”, que o metabolismo animal dos bovinos, suínos, aves processam e transformam nas proteínas animais tão demandadas.
Mas a China falha. Não consegue produzir soja senão nos baixos volumes de 15 milhões de toneladas em 8,5 milhões de hectares, assim como em todos os demais países, exceto Brasil, Argentina e Estados Unidos, que, juntos, produzem 82% de toda a soja mundial (Brasil na frente com 145 milhões de toneladas).
Coube a China: 1) importar carnes prontas do exterior; 2) importar soja e transformá-la internamente em proteínas animais, o que tem prevalecido inclusive na catástrofe recente de peste suína africana, que dizimou boa parte de seu rebanho. De fato, dos 167 milhões de toneladas de soja importadas no mundo, a China responde por 60% e o mundo ainda importa 68 milhões de toneladas de farelo de soja.
Essa fome por proteínas animais tem levado ao que a teoria econômica previra: elevação de preços de todos os tipos de carnes, assim como dos insumos para suas produções: soja e milho. As carnes bovinas tiveram um patamar de preços médios de US$ 5.000/ton até 2010, quando iniciou a escalada para os atuais US$ 10.000/ton; as carnes de aves tiveram menores elevações, de US$ 1.500/ton para pouco mais de US$ 2.000/ton no mesmo período; o milho teve preços históricos durante décadas ao redor de US$ 100/ton, pulando para US$ 200/ton em 2010 e chegando ao patamar de US$ 250/ton nos últimos meses; a soja teve comportamento semelhante, com US$ 250/ton até 2007, daí para R$ 400/ton até recentemente e explodindo para os níveis atuais ao redor de US$ 600/ton.
Em se tratando de grãos commodities, há que se separar efeitos especulativos das variações de preços reais, quando apostadores de bolsas investem em grãos prevendo ganhos fáceis de curto prazo (efeito cassino).
Por outro lado, estudos econométricos feitos por nós em 2013 no âmbito do Fórum do Futuro, com base no ano de 2010 e projeções para 2020, considerando somente variáveis “reais” — renda, consumo, elasticidades-renda e demanda — estimaram para 2020 uma demanda adicional de milho de 250 milhões de toneladas sobre um consumo em 2010 de 850 milhões de toneladas, ou seja, para algo em torno de 1,100 bilhão de toneladas.
Para que os preços se mantivessem no mesmo nível médio de 2010, seria necessário um aumento de produção mundial de 250 milhões de toneladas, e aconteceu: o crescimento foi de 275 milhões de toneladas, o que segurou os preços até fins de 2020, quando estouraram ao nível atual de US$ 260/ton. Como não houve neste curto prazo de 2021 nenhuma alteração de demanda nem frustração de oferta que pudesse justificar tamanho incremento, resta apostar no efeito especulativo, como ocorreu, várias vezes, nos últimos anos, e retorno aos preços de 2010.
Raciocínio similar se aplica à soja, com a diferença de que somente três grandes países produzem e dois deles — EUA e Argentina — esgotaram sua fronteira agrícola, ou seja, a resposta a esperar da oferta não se concretizará.
Podemos acalmar os mais exaltados, afirmando que os níveis de consumo calórico da China atingiram padrões nutricionalmente aceitos por meio de sua produção, mas terão que apelar quase integralmente à importação de proteínas para manter suas dietas completas, o que farão facilmente trocando bens não agrícolas por alimentos proteicos do Brasil, como tantos outros o fazem.
*Engenheiro agrônomo, foi ministro da Agricultura do Brasil (1974-79) e é detentor do World Food Prize 2006
**Economista, Ph.D, é consultor em Brasília
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