opinião

Artigo: Como a sociedade é impactada com a venda de testes a não psicólogos?

Correio Braziliense
postado em 24/08/2021 06:00

ANA SANDRA FERNANDES ARCOVERDE NÓBREGA* 

Existe uma discussão urgente no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) que, embora de domínio da psicologia, é de pleno interesse de toda a sociedade. Afinal, quem pode ter acesso ao conteúdo e gabarito de testes psicológicos?

Em recente decisão relacionada à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3481, a Suprema Corte declarou inconstitucionais alguns dispositivos da Resolução nº 2/2003, do Conselho Federal de Psicologia (CFP) — normativa que estipulava a exclusividade da comercialização de testes psicológicos a psicólogas e psicólogos.

A decisão teve como base o entendimento de que, embora o diagnóstico e a orientação psicológica devam ser executados exclusivamente por profissional habilitado, o acesso ao conteúdo de um teste psicológico não habilita qualquer pessoa à prática de atos privativos dos profissionais inscritos no respectivo conselho.

Ao retirar, entretanto, o caráter privativo da venda dos testes, a decisão, obrigatoriamente, promove impactos imediatos em rotinas e procedimentos de diferentes instituições das áreas da saúde, do sistema de Justiça e Segurança Pública, dos concursos públicos, de trânsito e aviação, dentre muitos outros. À primeira vista, de fato, isso pode parecer um assunto de interesse unicamente da categoria. Mas o que isso significa para a sociedade, afinal?

Os testes utilizados nas avaliações psicológicas servem primordialmente para identificar a aptidão das pessoas nos mais variados contextos. Gosto de exemplificar com dois: o do trânsito e o da segurança pública. Sendo o trânsito, historicamente, reconhecido como um dos espaços mais letais de nossa sociedade, como seria se não houvesse qualquer tipo de avaliação psicológica?

Como confiar a vida de nossos familiares a condutores inaptos de transportes escolares, ônibus urbanos, interestaduais, ambulâncias e afins? Como confiar que seria seguro andar nas calçadas ou pedalar nas ciclovias se os condutores não fossem habilitados adequadamente?

Vamos à segurança pública. De acordo com a edição de 2021 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a Polícia Federal informava que, em 2017, o Sistema Nacional de Armas (Sinarm) continha 637.972 registros ativos de armas. Ao final de 2020,este número subiu para 1.279.491, representando aumento superior a 100% no período analisado.

Com uma verdadeira corrida armamentista em curso, como garantir, minimamente, que esse arsenal não caia nas mãos de pessoas inaptas que circulam em nossas cidades, escolas e espaços de trabalho e lazer? Como garantir que essas armas não sejam usadas inadequadamente, em flagrante atentado à vida?

O Conselho Federal de Psicologia — como instituição responsável por orientar, fiscalizar e disciplinar o exercício profissional de mais de 407 mil psicólogas e psicólogos em todo o Brasil — segue atuante na defesa da integridade dos testes e da qualidade da avaliação psicológica, porque compreende que tal mecanismo representa a promoção da saúde (física e mental) e a proteção da vida.

Em 20 de abril, a autarquia ingressou com embargos de declaração à ADI 3.481, que culminou na liberação da comercialização de testes psicológicos. Com isso, pretendeu ponderar as consequências que a decisão da Suprema Corte acarretaria para a sociedade, elucidando aspectos relacionados ao roteiro de aplicação e correção, crivos, folhas de respostas, gabaritos, entre outras questões. Também protocolou, em 25 de junho, alguns memoriais e um parecer elaborado pelo advogado constitucionalista Daniel Sarmento, professor titular de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Os embargos de declaração serão julgados neste mês. Esperamos que os ministros e as ministras do STF se sensibilizem, que compreendam que o que está em jogo extrapola a atuação de uma categoria profissional. O que o julgamento decidirá, afinal, será a maneira como todas as pessoas serão impactadas em suas rotinas nas mais diversas instâncias da vida.

Essa discussão precisa sair dos espaços institucionais e atingir o diálogo público, pautado no respeito e, sobretudo, na ciência que marca a formação de psicólogos e a aplicação de seus conhecimentos em benefício da sociedade. Defender os testes psicológicos é proteger a vida.

*Psicóloga e presidente do Conselho Federal de Psicologia

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