DANIEL CARDOSO*
O ministro Paulo Guedes apresentou, recentemente, uma Proposta de Emenda Constitucional com o suposto objetivo de equacionar o crescimento de 60,7% no orçamento destinado ao pagamento de precatórios. A proposta representa uma agressão aos direitos dos credores e é um retrocesso ao país. Sob o pretexto de resolver um suposto problema transitório (Orçamento de 2022), o texto altera permanentemente todo o sistema de pagamento judicial da União.
A primeira proposição introduz uma moratória constitucional. A proposta parcela: (i) em até 10 anos, o precatório superior a R$ 66 milhões e, (ii) em até 10 anos, os precatórios que, em ordem decrescente, somarem mais de 2,6% da receita corrente líquida do governo.
É evidente a ausência de necessidade de nova alteração na forma de pagamento dos precatórios em benefício da União, que jamais atrasou o pagamento de qualquer precatório. O suposto problema dos “superprecatórios” foi equacionado em 2016 pela EC 94, que autorizou o pagamento em seis parcelas anuais dos precatórios, cujo valor individual ultrapasse 15% do montante previsto no Orçamento e a emissão de dívida para o financiamento de precatórios devidos pela União e demais entes federativos. Em 2020, a Lei nº 14.057 instituiu, também, a possibilidade de acordo entre credores de precatórios e a União, com o objetivo de aliviar os próximos orçamentos.
Os mecanismos constitucionais e legais existem. A fixação permanente do teto de 2,6% do orçamento acarretará inédito acúmulo histórico de dívida pela União, sob o pretexto de equacionar o Orçamento de 2022. Também foi criado o Fundo de Liquidação de Passivos da União, permitindo a antecipação dos precatórios parcelados. Isso mesmo: o governo antecipará com deságio os precatórios que ele mesmo parcelou. Uma atitude um tanto quanto contraditória de um governo que, desde o início, sustentou a mínima intervenção na economia.
A segunda proposição trata do depósito em juízo do precatório, quando o credor for simultaneamente devedor da Fazenda, mesmo na hipótese em que tenha havido a cessão do precatório. A proposta abarca não somente os débitos do atual credor do precatório, mas, também, débitos do antigo credor, minando seriamente a segurança jurídica de seus detentores e adquirentes e comprometendo seu direito constitucionalmente garantido de negociá-los.
O sistema de compensação já existe e: (i) atinge apenas os débitos do atual detentor do precatório e (ii) está restrito ao momento da expedição do precatório mediante manifestação da Fazenda. A própria exposição de motivos admite que a compensação de ofício já foi rechaçada pelo STF na procedência da ADI 4425. O governo reconhece a tentativa de contornar uma norma constitucional.
A terceira proposição altera o critério de correção dos precatórios para Selic, reduzindo drasticamente o valor dos precatórios que venham a ser parcelados, inclusive os já expedidos. A Selic não é índice de correção monetária e não reflete a corrosão da moeda. Trata-se de uma decorrência natural do direito de propriedade garantido na Constituição e impassível de ser suprimida por meio de PEC, na linha dos precedentes do STF, que têm historicamente definido a aplicação do IPCA.
A aplicação da regra inclusive aos precatórios expedidos implica evidente mudança de regra no meio do jogo, com sérias e graves consequências à imagem do país, na contramão de uma série de tantas outras promovidas nos últimos anos no sentido de aumentar a credibilidade, a estabilidade e o respeito às instituições e à separação dos Poderes.
A quarta proposição autoriza o Executivo a descumprir a regra de ouro das contas públicas sem aval específico do Congresso. A regra impede o endividamento do governo para o pagamento de despesas correntes, autorizando-o apenas quando destinado a investimentos públicos. É mais uma tentativa de contornar-se uma regra constitucional.
As inconsistências são sérias. Os afetados vão desde credores originais (aposentados, pensionistas etc.) até investidores nacionais e estrangeiros que aguardaram décadas e confiaram na estabilidade das regras. Em cenário de crise, a confiança do investidor é mais um elemento decisivo na alocação do investimento.
Investidores terão seus retornos destruídos, aumentando a desconfiança daqueles que tenham o Estado na ponta pagadora. A postura ultrapassada se assemelha àquelas praticadas nas décadas de 1980 e 1990, e que geraram “esqueletos” cujos efeitos nocivos são sentidos até hoje. É um tiro no pé.
O parcelamento imotivado, a quebra da regra de ouro, a compensação com débitos do antigo detentor e a alteração do critério de correção sem a necessária recomposição do valor da moeda e da mora da União no pagamento de ações que perduram muitas vezes por 30, 40 anos, inviabiliza a segurança jurídica e o direito de propriedade.
O Congresso tem em suas mãos o poder de ratificar a ideia de que o país pretende trilhar o caminho da confiança dos seus cidadãos e da comunidade internacional ou, simplesmente, adotar o caminho mais fácil e aprovar a proposta com finalidades meramente eleitoreiras.
*Advogado em São Paulo, mestre em direito econômico e financeiro pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor da Algarve Capital
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