JUVENAL ARAÚJO - Subsecretário de Políticas de Direitos Humanos e de Igualdade Racial da Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania (Sejus)
Trazemos à memória os 199 anos da separação política do Brasil do reino unido de Portugal. Hoje somos mais que uma simples colônia e a independência foi um marco determinante para as trajetórias da nossa nação. Mas quase dois séculos depois, ainda estamos no empenho por mudanças estruturais no quadro político e social do país.
Frente as crescentes tensões sociais dos dias atuais, é importante destacar que o Brasil dispõe de autonomia, de uma estruturação política e de leis próprias em níveis federal e estadual, regidos pela reputação da nossa Constituição. A soberana e notável Constituição Cidadã preconiza a garantia de direitos dos brasileiros e a plenitude do processo democrático do nosso país.
Mas não posso deixar de chamar atenção para as consequências dos contrastes que enfrentamos: pobreza, desemprego, marginalização, privação de bens públicos, violências. O que nos leva a crer que, apesar da Constituição asseverar que somos todos iguais, estamos ainda diante de um Brasil de desigualdades.
Entender o Brasil como uma nação afrodiaspórica é essencial para a compreensão dessas desigualdades incorporadas nas nossas relações históricas. O que isso significa? Que fomos constituídos por um processo de migração forçada, imposta, coagida, desumana por meio da escravização de negros, que definiu também a pluralidade identitária afro-brasileira.
O fato é que a história do Brasil é fundamentada pelo emprego da força de trabalho escravizada e pela resistência de quem ativamente nunca deixou de lutar por liberdade, por consciência negra, contra o racismo e todas as suas ressignificações. Essa intensa marca da nossa afrodescendência revela ao mundo a dimensão e o caráter de liberdade, respeito e dignidade das sociedades africanas que aqui desembarcaram, amontoadas como coisas em navios de carga, conhecidos como tumbeiros devido à morte de milhares de africanos durante a travessia.
Quando falamos em independência e processos escravagistas, destacamos que o Estado brasileiro se uniu aos interesses conservadores coloniais para manter seus privilégios — infelizmente, como assim é ainda hoje — e, vergonhosamente, fomos a última nação a abolir esse regime social de sujeição e exploração do negro como propriedade privada para fins econômicos. Ainda assim, devemos à força africana e seus descendentes, que por aproximadamente três séculos em que vigorou a instituição escravocrata, toda a construção do nosso riquíssimo patrimônio religioso, econômico, histórico, cultural, linguístico e arquitetônico.
Dessa herança escravagista não temos absolutamente nada do que nos orgulhar e expresso neste lugar meu posicionamento político e ideológico no que se refere a necessidade urgente de reparação histórica, que possa legitimar, humanizar e valorizar as lutas da população negra e dos movimentos negros da atualidade. Independentemente dos poucos avanços que já tivemos.
Ainda não é o suficiente, já que pelos efeitos acumulados das discriminações ocorridas no passado e enraizadas no presente, continuamos alijados da efetiva igualdade de oportunidades e de tratamento. Sei que não está fácil para ninguém, mas é preciso que não esqueçamos quem nós somos. Temos, sim, muitas mazelas, mas podemos contar também com o contentamento de estar na nossa pele.
Somos nós os únicos a ter um modelo de saúde baseado na universalidade representado pelo Sistema Único de Saúde, nosso território esbanja uma biodiversidade rica e única, somos cordiais, colaborativos, multiculturais, empreendedores natos e talentosos na arte de sobreviver. Nosso mercado editorial é um dos maiores do mundo — e daí eu volto a falar da contribuição negra, diante do boom de autores negros nos últimos anos, só não viu quem não quis — e que venham mais e mais leituras essenciais para não recairmos no discurso e nas práticas racista, misógina, homofóbica, machista e negacionista.
Reuni algumas de nossas positividades para que sejamos capazes de transformar nossos espaços e vivências em experiências transformadoras. Há um caminho longo quando se fala de desenvolvimento do Brasil, mas juntos somos capazes de construir outros laços.
Essa luta deve ser de todos nós. Brancos, negros, indígenas e ciganos, pobres e ricos, trabalhadores e empregadores, do sul e do norte. Só temos a ganhar com um Brasil mais democrático, antirracista e verdadeiramente independente. Avancemos para além das margens do Ipiranga.
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