JAN CARLO MORAIS OLIVEIRA BERTASSONI DELORENZI*
Em 1904, no Brasil, em especial na cidade do Rio de Janeiro, explodiu um movimento popular que ficou conhecido como a Revolta da Vacina, quando a população se opôs à obrigatoriedade da vacinação contra varíola. Embora a aplicação da vacina contra varíola fosse obrigatória desde o início do segundo reinado, a lei, de fato, não era cumprida. A ação proposta naquele ano mostrou-se truculenta, pois os agentes de saúde invadiam as casas dos munícipes e faziam a aplicação vacinal à força. A confusão foi tamanha que o Presidente Rodrigues Alves revogou a lei.
No decorrer do século 20, a epidemia de varíola recrudesceu e outras epidemias surgiram, como a Gripe Espanhola, a Aids, o sarampo, entre outras. Uma ação colaborativa de vacinação em massa contra a varíola permitiu que a infecção natural dessa doença fosse totalmente erradicada desde 1977, após muitos séculos dizimando vidas em todas as partes do mundo.
No Brasil, as campanhas de vacinação alcançavam índices de cobertura vacinal cada vez maiores, possibilitando, inclusive, o controle e a erradicação do sarampo no final da década de 1990, certificando o país, em 2016, como livre da doença. Entretanto, ainda que as vacinas sejam comprovadamente eficazes e seguras, após o seu uso sistemático desde a primeira vacinação, em 1796, por Edward Jenner, a oposição à vacina é recorrente e ganha força nesses tempos de fake news, em que a opinião e “especialistas,” formados pelos vídeos do YouTube, se propagam pelas redes sociais.
A oposição à vacinação ganhou força no final da década de 1990, quando um médico britânico questionou a segurança da vacina tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola), relacionando o uso desta vacina à indução de casos de autismo. Os seus dados foram publicados na importante revista inglesa Lancet. Contudo, após uma revisão cuidadosa dos dados apresentados, verificou-se que o médico agiu de forma criminosa, manipulando os resultados. O artigo foi retirado da revista, o médico teve seu registro cassado, mas o dano de toda essa confusão provoca impacto até os dias de hoje.
Enquanto o boato de que a vacina poderia causar autismo se espalhava, a cobertura vacinal para o sarampo reduzia em diversos países, inclusive no Brasil, possibilitando a circulação do vírus. E não demorou muito tempo para que, em 2018, perdêssemos o certificado de erradicação do sarampo. O ressurgimento de muitas outras doenças, como a poliomielite, corrobora a veracidade desse fato.
Essa análise histórica deixa claro que o impacto das notícias falaciosas de que as vacinas contra a covid-19 trazem mais risco do que a doença em si, incluindo afirmações estapafúrdias como o risco de alterações nucleares e os raros casos de reações adversas graves ainda em investigação (doenças autoimunes, miocardites, dentre outras), pode ser catastrófico no momento em que a população precisa ser amplamente imunizada.
Os relatos na literatura apontam que a frequência das reações adversas é tão baixa que poderiam acontecer naturalmente na população. É o caso apontado nessa semana da possibilidade de miocardite causada em adolescentes vacinados com a vacina Comirnaty (Pfizer/Biontech). Alguns artigos publicados com relato de casos apontam o quadro de miocardite como uma reação adversa leve a moderada de incidência extremamente baixa.
Em 9 de julho último, o Advisory Committee on Immunization Practices (ACIP) do governo dos Estados Unidos revisou a incidência de miocardite em adolescentes e jovens de 12 a 30 anos, afirmando em publicação que “nenhuma alternativa às vacinas de mRNA contra covid-19 para adolescentes estará disponível no futuro próximo, e a vacinação de adolescentes oferece proteção contra covid-19 que pode ser importante para o retorno às atividades educacionais, sociais e extracurriculares. Níveis mais altos de cobertura de vacinação podem reduzir a transmissão na comunidade, o que pode proteger contra o desenvolvimento e a circulação de variantes emergentes” (tradução livre).
Portanto, considerando a liberação para o retorno das atividades educacionais presenciais tanto nas escolas quanto nas universidades, a suspensão da vacinação para essa faixa etária deve trazer mais danos do que benefícios. Quanto mais faixas etárias vacinadas, menor será o risco de disseminação da doença e o surgimento de novas variantes virais.
Desde o final do século 18 as vacinas são usadas e estão entre os quatro pilares da saúde pública. Isso, sem dúvida, permitiu reduzir a mortalidade em todos os estratos populacionais, em especial entre as crianças. Negar a eficácia e a segurança de uma vacina é negar todo o avanço científico acumulado em mais de dois séculos. É negar o brilhantismo de Edward Jenner, Louis Pasteur, Oswaldo Cruz, Vital Brazil e tantos outros cientistas e profissionais que labutam diariamente nos laboratórios, nos hospitais e na linha de frente do combate às doenças infecciosas.
*Farmacêutico, mestre e doutor em ciências (biofísica) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor de imunologia e saúde pública na Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), e diretor do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da UPM
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