OPINIÃO

O camburão

» ANDRÉ GUSTAVO STUMPF Jornalista

No feriado de 12 de outubro de 1977, o Palácio do Planalto amanheceu protegido por soldados e atiradores de elite em posições estratégicas. O presidente da República decidira exonerar seu ministro do Exército, Sylvio Frota, que era abertamente contra o processo de abertura lenta e gradual na política brasileira. Naquele dia, ocorreu o confronto decisivo entre os partidários da democracia e os defensores do regime fechado conduzido pelos militares.

Geisel enviou emissários ao aeroporto de Brasília, onde ocorreu o estica e puxa político-militar. Uns generais eram convidados a ir para o quartel-general do Exército, outros, para o Palácio do Planalto. O presidente venceu o confronto, determinou a exoneração de seu ministro do Exército. Esse lance pavimentou o caminho para o general João Baptista Figueiredo subir a rampa do Planalto e promulgar a anistia. Os integrantes da chamada linha dura foram relegados à desimportância. O general Augusto Heleno era ajudante de ordens do ministro Sylvio Frota. Hoje, é um dos principais conselheiros do presidente da República.

Os herdeiros daquela turma de perdedores se espalharam pela babel brasileira. Uns se envolveram com o negócio das drogas. Os jogos de azar atraíram alguns, outros decaíram para o grupo de ladrões profissionais do erário e milicianos que infestaram áreas não protegidas pelos governos locais e nacional. O jovem militar Jair Bolsonaro foi punido por tentar colocar bomba no quartel por causa de baixos salários. Nunca escondeu ser contra a anistia.

O presidente Bolsonaro pertence àquela turma. Manteve a admiração pelo coronel Brilhante Ustra, acusado de torturar presos políticos, sua alergia a assuntos ligados ao meio ambiente e à questão de gênero. Ele não consegue entender a vida democrática. Desconhece o esforço de negociação do saudoso Petrônio Portella, ministro da Justiça do governo Figueiredo que, com paciência e determinação, negociou, passo a passo, a anistia. A medida permitiu que Brizola e Arraes, entre centenas de expatriados, retornassem ao Brasil.

Bolsonaro gosta do poder. Ele enxerga nos milhares de seguidores a legitimidade para modificar a essência do regime político nacional. Não quer realizar a eleição, porque há o risco de derrota. A solução é sublevar o Estado brasileiro, derrubar os conceitos constitucionais e assumir plenos poderes, suspender as garantias individuais, fechar o Congresso e modificar a constituição do Supremo Tribunal Federal para conseguir impor sua vontade. Isso se chama ditadura, semelhante à que está no poder na Venezuela.

Ele gosta, cada vez mais, de exercer o poder de comando. Nomeia com prazer e demite com humilhação, inclusive generais. Prometeu liberalismo e entregou intervencionismo estatal. Acenou com radical presença contra a corrupção. Demitiu o ministro que liderou a Operação Lava-Jato e colocou no poder partidos políticos especializados em trabalhar em proveito próprio. Defendeu com afinco a defesa dos interesses pecuniários de filhos e apaniguados.


A esquerda evoluiu na esteira do Partido dos Trabalhadores, cujo líder, Luiz Inácio Lula da Silva, jamais foi comunista. Ele se envolveu no projeto do então deputado José Dirceu, que se aliou a outras legendas para buscar a hegemonia no país. Quase chegou lá. Perdeu-se quando o dinheiro e os interesses começaram a guiar suas prioridades. Foi resgatado pela surpreendente decisão do Supremo Tribunal Federal de libertá-lo. Esse detalhe complica ainda mais o cenário político atual.


Bolsonaro começou sua administração demitindo assessores próximos, civis e militares. Moldou o governo à sua feição. Bajulou as polícias militares e fez questão de interferir no comando das Forças Armadas. Exigiu lealdade absoluta e inquestionável. Promoveu até o ridículo desfile de veículos militares fumacentos, a pretexto de lhe prestar apoio público.

O resultado da evolução dos fatos neste curto espaço histórico aparece nos dois comícios no dia 7 de setembro. Foi a tentativa de reverter aquilo que ocorreu em Brasília, há 43 anos. Ele não quer admitir que a democracia seja uma realidade no Brasil. Petrônio Portella, quando negociava com os militares a abrangência da anistia, me disse numa conversa particular. “Se eu falhar, o camburão vai passar na minha casa. Mas não se iluda: depois também vai passar na sua casa.” Achei que esse tempo tinha ficado na história. Mas é atual. O golpe de Estado foi ensaiado. O Supremo, com auxílio precioso de Michel Temer, segurou o movimento. Até agora.