ANDRÉ RICARDO NUNES MARTINS -Jornalista, membro da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-DF)
Nos idos de 1970, numa escola no interior do Brasil, um menino indígena escaldado pelo constante bullying que sofria de coleguinhas não indígenas, ao chegar a uma escola nova, adotou uma estratégia peculiar. Notando que os filhos de imigrantes japoneses eram bem tratados e percebendo que podia se passar por um deles, resolveu, uma vez questionado, esconder sua origem, fornecendo identidade nipônica. E não é que a estratégia funcionou? O episódio é verídico e foi vivido pelo piloto de aeronave e líder indígena Marcos Terena. Ouvi essa história dele mesmo num debate público anos atrás.
Trago esse caso para ilustrar como o racismo castiga mais a umas do que a outras minorias raciais. E isso é percebido até mesmo pelas crianças. O desenvolvimento das relações raciais em uma determinada nação tem a ver com razões históricas e efeitos de políticas públicas. Povos africanos chegaram ao Brasil — do século 16 ao 19 — sob o império do regime de escravidão e do estigma de sub-raça. Este não é combatido quando a escravidão é legalmente extinta. Pelo contrário, ganha novos contornos.
Os povos nativos das Américas sofreram com escravidão, exploração econômica, desapropriação de suas terras e perseguição pura e simples. Uma nova consciência quanto a relações de respeito e cordialidade viriam com as iniciativas do marechal Cândido Mariano Rondon e a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), em 1909. Essas duas minorias, povos originários e negros, foram e são alvo de política nefasta chamada genocídio, cujos instrumentos podem ir do assassinato direto a maus-tratos, exploração, disseminação de doenças, descaso e desassistência.
A Constituição de 1988 — a mais avançada e inovadora de nossas cartas magnas — trouxe meios para barrar essa discriminação e de promover políticas de igualdade racial. Há setores das elites que até hoje não engolem medidas protetivas e promotoras dessas minorias. O governo Bolsonaro tem, não apenas na retórica, enveredado por esse caminho. Mas há também crimes perpetrados recorrentemente Brasil afora e responsabilidades a cobrar de inúmeros gestores estaduais e municipais. E como há muitos que se beneficiam dessas práticas, será preciso bem mais do que mudança de governo.
Os imigrantes europeus se beneficiaram, em grande medida, de patrocínio oficial ou de setores da elite para se estabelecerem no Brasil, principalmente entre meados do século 19 e começo do século 20. Eram, em geral, famílias pobres ou empobrecidas, alijadas em processos de mudanças sociais e políticas no Velho Continente. De nossa parte, houve forte interesse eugenista — de “melhorar” o perfil demográfico da população. Isso era dito abertamente no Congresso Nacional e na imprensa [Skidmore, Thomas. Preto no Branco — raça e racionalidade no pensamento brasileiro (1870-1930), Ed. Companhia das Letras, 2012].
A busca era seletiva. O alvo: trabalhadores brancos, a ponto de um chanceler brasileiro, José Manoel de Azevedo Marques, ter instruído nossas representações nos Estados Unidos — embaixada e consulados — a negarem visto de entrada a afro-americanos [Pereira, Amílcar Araújo, O mundo negro; relações raciais e constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil. Ed. Pallas, Faperj, 2013]. Em tempos anteriores à conquista dos direitos civis das décadas de 1950 e 60, a comunidade negra norte-americana idealizava o paraíso racial tupiniquim. Houve até mesmo um afro-americano rico, Robert Abbot, que visitou o Brasil em 1923 para conferir a possibilidade de desenvolver um projeto de colonização por aqui. Seu visto foi negado na primeira vez, só o conseguindo com a intervenção do senador Medill McCormick (Pereira, idem). Recordemos que, no século 19, alguns sulistas brancos facilmente migraram para o Brasil. Insatisfeitos com o fim da escravatura por lá vieram gozar as benesses de raça por aqui.
A perpetuação de privilégios relacionados à branquitude e a consequente negação da igualdade racial a povos originários e afro-brasileiros sobrevive hoje por meio da exploração do trabalho análogo à escravidão no meio rural e urbano, no tardio reconhecimento dos direitos trabalhistas dos empregados domésticos, no desrespeito e perseguições policiais sistemáticas nas favelas e nas periferias, na opção preferencial de vítimas por parte dos sistemas policial e jurídico brasileiro, na invasão e exploração de terras indígenas. Nosso dever de casa como nação brasileira está terrivelmente incompleto. Desenvolvimento sustentável pra valer? Só com ajuste de contas com nosso passado/presente.
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