Por VALDIR OLIVEIRA -Superintendente do Sebrae no DF
Em 1º de outubro de 2021, o Brasil teve 492 mortes por covid-19, sendo a menor média móvel desde 14 de setembro último, segundo o consórcio de veículos de imprensa. A análise é de que o número de mortes vem caindo, o que pode representar o alívio no controle dessa pandemia e uma volta à normalidade. Um deles foi o meu pai. Sim, em 1º de outubro de 2021, tivemos o meu pai e mais 491 vítimas desse vírus maldito. Um homem que lutava contra sérios problemas de saúde, mas que queria viver. Combateu o bom combate, mas não resistiu à última batalha contra esse vírus, que provoca uma morte indigna para quem vai e um sofrimento indigno para quem fica.
Meu pai não é um número na estatística; é pai, avô e marido que ainda tinha um final de história a concluir. Sua vida era um livro que ainda restavam poucas páginas em branco, que ele lutava para colorir, como disse Toquinho na música Aquarela. Não conseguiu. As últimas páginas ficaram em branco, porque ele não conseguiu vencer a última batalha.
Cresci vendo meu pai ouvir o cantor Nelson Gonçalves. Sua voz firme traduzia emoções que meu pai incorporava como se dele fossem. Deitado em sua rede, ele ouvia a dor da saudade interpretada por meio da canção de Sérgio Bittencourt, Naquela mesa. Ele lembrava do irmão que se fora prematuramente e se emocionava, com seus olhos marejados cantarolando “naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele tá doendo em mim”. Não imaginei que ouviria essa música sentindo a dor que ele sentiu. Eu senti. Doeu, e muito.
Nosso almoço de domingo não foi completo. Quando sentamos à mesa, minha mãe e meus irmãos, lembrei da música que ele, emocionado, entoava para mim, com a voz embargada, dizendo “naquela mesa ele contava história que hoje na memória eu guardo e sei de cor”. Faltou ele na mesa nesse domingo. Se Nelson Gonçalves pudesse cantar o que eu estou sentindo agora, ele diria “se eu soubesse o quanto dói a vida, essa dor tão doída não doía assim”.
Essa pandemia não é só número e ciência. Essa pandemia é dor. As vítimas desse vírus, sejam os que foram a óbito ou os que ficaram sequelados, são pais, filhos, avós ou amigos. São entes queridos que deixam um vazio que não será preenchido por um discurso oficial de projeções estatísticas para acalmar a população. Quem sofre, sente a sua dor no peito e precisa de uma acolhida. Se temos quase 600 mil vítimas de covid-19, temos milhões de pessoas atingidas pelas consequências dessa crueldade que todos os dias nos surpreende com formas novas de ataque.
Isso não pode se transformar em disputa. Não posso crer que o falecimento de meu pai seja pauta para uma disputa de quem quer que seja. A nossa dor não tem número, nem coloração de disputas por quaisquer que sejam os motivos. Nossa dor é fruto da perda, do vazio, da saudade que ficou e do sentimento de impotência, por não termos protegido aquele que nos protegeu a vida toda. É esse o sentimento de quem perde um ente querido para esse vírus, de ter falhado na proteção de quem era mais frágil.
Vão ficar a saudade e a lembrança. Os momentos em que sua verdade era sempre maior que a minha e que dizia como deveríamos seguir. Aquele momento que mostrava com sua experiência o que deveríamos fazer, mas que nos dava a segurança de que ele estaria junto para resolver. Meu pai sempre foi assim, alguém que resolvia, junto conosco, os nossos problemas. Como cantarolava com seu cantor preferido, “naquela mesa ele contava sempre e me dizia sempre o que é viver melhor”. Se ficou a sensação de falha na proteção, ficou o aprendizado de seguir protegendo aqueles que amamos.
Se essa pandemia nos trouxe algum ensinamento, foi a necessidade de sermos mais empáticos e solidários. Ninguém vai resolver uma dor se não a estiver sentindo. Não são ações burocráticas, muito menos estudos estatísticos, que vão confortar a dor de quem está sofrendo o vazio deixado por esse vírus. Não temos explicações racionais para um sofrimento de emoção. Claro que aqueles que estão no combate a essa pandemia devem se apoiar em estudos e informações científicas necessárias a essa luta. Mas as baixas dessa guerra devem ser tratadas na emoção. A dor deve ser sentida e amainada por quem nos lidera.
Só a solidariedade nos fará vencer essa crise, porque não nos resumimos a números estatísticos. Somos pessoas, com sentimentos humanos que nos fazem sofrer. Algumas vezes, o impacto é maior que a agressão física. A dor que senti com a perda de meu pai foi física. A dor que senti ao sair daquela UTI, onde fiz minha despedida, foi de uma intensidade física, como se tivessem cortado meu coração. A dor que senti quando vi meu pai perder a batalha contra um vírus, e que eu não pude evitar, foi um corte na carne sem anestesia. Foi uma dor doída demais. Essa dor não pode ser apenas um número.
Não é fácil processar essa perda. Caí, mas caí de pé. Sigo firme na trilha da vida para cumprir a minha caminhada. Tenho páginas em branco para colorir, como me ensinou Toquinho em sua canção. Hoje eu vou cantar para o meu pai a canção que vi tantas vezes ele cantar para mim: “Pai, nos seus olhos era tanto brilho que mais que seu filho eu virei seu fã”. Segue em paz meu pai, aqui vamos continuar a nossa jornada.
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