OPINIÃO

O Sísifo negro

Correio Braziliense
postado em 23/10/2021 06:00
 (crédito: Gomez)
(crédito: Gomez)

Maikio Guimarães - Jornalista e escritor em Porto Alegre (RS)

Entrei em contato com o meu amigo Ramos da Silva após ter recebido o convite para escrever este artigo. Cada vez que conversamos, ele conta inúmeras histórias sobre os diversos obstáculos que precisou superar na vida profissional. Constrangimentos vividos por ser um homem negro em um país projetado apenas para pessoas brancas. Pedi autorização para reproduzir alguns episódios da trajetória dele neste texto. É o que farei a partir de agora.

No último semestre da faculdade de jornalismo, Silva foi contratado como produtor de uma das maiores emissoras de rádio do Brasil. Por sonhar em construir carreira na reportagem, ele se inscreveu em um processo seletivo interno. A vaga daria ao vencedor a oportunidade de cobrir a política local. Após alguns dias, meu amigo foi chamado pelo chefe. O gestor afirmou que ele tinha quebrado alguns recordes. Conquistou as maiores notas da história da empresa nas provas de português, inglês e conhecimentos gerais. O balde de água fria foi jogado em seguida: “Na minha avaliação subjetiva, você não está preparado para ser repórter de política”. Por uma análise sem critérios objetivos, o projeto do Ramos da Silva foi engavetado.

Após alguns anos, ele decidiu que era hora de mudar. Tinha a expectativa de encontrar um local de trabalho onde ter a pele escura não fosse um empecilho para a progressão na carreira. Hoje, percebe que foi ingênuo. O racismo estrutural está na base da sociedade brasileira. A pessoa negra vai enfrentar os mesmos dissabores em qualquer ambiente profissional. Como assessor de uma grande organização política, meu amigo viveu a ilusão de que seria valorizado. O chefe do setor de imprensa era um homem imaturo. Também se destacava por ser preguiçoso e viver em guerra com os integrantes dos demais departamentos da instituição.

Ramos da Silva era trabalhador e cordial. Tinha a atuação reconhecida e elogiada pelos colegas. Apesar de a direção reclamar da falta de profissionalismo do responsável pela assessoria de imprensa, o indivíduo seguiu no posto. Meu amigo só foi entender o óbvio ululante alguns anos depois. Apesar de incompetente, o chefe do setor de imprensa era branco. Se fosse demitido, surgiria uma pressão natural para que o Silva ocupasse o posto de coordenador. Os dirigentes da organização podiam aceitar ter um negro na equipe. No entanto, ter um negro em cargo de chefia estava fora de cogitação.

A visão inocente sobre a realidade era coisa do passado. Meu amigo percebeu a existência de um padrão nos reveses. Sempre aconteciam em momentos em que a ascensão profissional parecia iminente. Ele procurava não se abater. Foi em busca de um novo desafio. Conseguiu emprego em uma importante entidade de classe. Era o assessor de imprensa do presidente da organização. Silva tinha como chefe uma jovem jornalista. Além da inexperiência, a moça exalava insegurança. Nesta época, Ramos da Silva já contava com quinze anos de vivência em grandes empresas jornalísticas e assessorias de comunicação.

Silva recebeu do presidente da instituição o convite para atuar como chefe de gabinete. A proposta foi feita dois meses após o ingresso dele na organização. Um enorme reconhecimento. A responsável pela assessoria de imprensa não escondeu ter odiado a ideia. Em uma semana, com o apoio do chefe de outro setor, ela fez o presidente da entidade de classe mudar de ideia. Também conseguiu garantir que Ramos da Silva fosse demitido. A velha e traumática puxada de tapete.

Na atualidade, meu amigo abandonou as redes sociais. Alega estar profundamente decepcionado com as pessoas. Também evita interações desnecessárias no mundo real. Diz preferir a companhia dos livros. Ele prometeu, assim que nos encontrarmos para um café, contar o problema do momento. Apesar de ter um título de doutor e uma longa experiência como jornalista, Ramos da Silva tem enfrentado uma série de aborrecimentos na universidade onde atua como professor. O leitor ou leitora já deve ter adivinhado que ele é um dos poucos negros no lugar.

Sísifo é um personagem da mitologia grega. Seu grande feito foi ter enganado os deuses. Morreu quando estava velho. Como castigo, por toda a eternidade, foi condenado a empurrar uma grande pedra até o cume de uma montanha. Ao chegar perto do topo, a pedra rolava ladeira abaixo. O esforço precisava ser repetido. Quase toda pessoa negra no mercado de trabalho é uma versão moderna de Sísifo.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação