Guilherme Jaganu*
Não poderemos mais homenagear Juscelino. Não poderemos mais homenagear Niemeyer e Lúcio Costa. Não poderemos mais homenagear Israel Pinheiro ou Burle Marx. Na verdade, nem mesmo poderemos celebrar o sonho de Dom Bosco. Brasília deixará de ser a tão admirada obra urbanística concebida por esses homens e erguida com o suor de candangos e pioneiros. O projeto que ganhou reconhecimento mundial por suas características de planejamento setorizado, por privilegiar bairros exclusivamente residenciais e por assegurar a ampla preservação de áreas verdes, está sendo desmantelado.
O estrago ocorre por conta do processo de revisão da Lei de Uso e Ocupação do Solo (Luos). Como um trator, dirigido pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano, o novo texto da legislação passa por cima dos anseios de milhares de moradores, que sempre abraçaram a qualidade de vida como um bem maior?
O desrespeito ao direito assegurado pelo Plano Urbanístico é flagrante: está sob grave ameaça a opção que estes cidadãos fizeram por viver uma cidade onde se valoriza a existência de casas para fins residenciais, com natureza aprazível e um meio ambiente protegido. Não por acaso, as regiões do Lago Sul, do Lago Norte e do Park Way foram projetadas para serem os jardins do Plano Piloto — tanto que, hoje em dia, se constituem na maior área de preservação urbana do mundo.
Ao longo dos anos, alguns moradores desses bairros contaram com a leniência dos órgãos do Estado para ocupar áreas verdes com projetos que violavam sua finalidade original — ergueram ali quadras de tênis ou espaços gourmet, por exemplo. Em outra vertente, escritórios de profissionais liberais passaram não apenas a ocupar casas nessas regiões, mas avançaram sobre o uso do solo, abusando do concreto para oferecer estacionamento a seus clientes.
Em ambas as situações, os impactos possuem largo escopo. As áreas verdes são fundamentais para a adequada absorção das chuvas, contribuindo com a manutenção dos aquíferos que alimentam os córregos tributários do lago Paranoá. A ocupação indevida, portanto, termina por colocar em risco o próprio volume de água de nosso lago.
Mas o governo do DF faz questão de demonstrar que não vai priorizar as questões ambientais — muito pelo contrário. O aparato de fiscalização, que antes estava sob responsabilidade das Administrações Regionais, perdeu muito de sua força quando foi transferido para a Agefis, atual DFLegal. O desmonte dos mecanismos de controle permitiu, por exemplo, que as estruturas de um enorme colégio fossem erigidas dentro do Refúgio de Vida Silvestre Garça Branca, em pleno Lago Sul. Detalhe: a obra operou durante seis meses sem sequer contar com alvará de construção.
Seria de esperar que a revisão da Luos colocasse como uma de suas prioridades enfrentar essas violações ao ordenamento urbanístico do Distrito Federal. O que está acontecendo, contudo, é precisamente o oposto. Governo e Câmara trabalham para normalizar as arbitrariedades cometidas, integrando esse tipo de procedimento ao marco legal vigente. Além disso, propõem mudanças no gabarito de edificações, possibilitando que prédios venham a ser construídos em bairros onde atualmente as casas podem ter, no máximo, dois pavimentos. O resultado de tais absurdos é fácil de prever: o aumento da ocupação das áreas verdes, com o consequente comprometimento do sistema aquífero do Lago Paranoá. Ainda mais grave: deverá crescer — e muito — o despejo de dejetos, exacerbando os problemas de poluição que historicamente afetam o lago.
Chama a atenção, por outro lado, que o Setor Comercial Sul tenha sido abandonado pelas autoridades, espantando da região empresas, comércios e escritórios. Da mesma forma, há enorme vacância de salas e lojas nas áreas comerciais das quadras do Plano Piloto, de outras cidades-satélites e do Lago Sul e Norte. Diante desse cenário, qual o sentido de facilitar o uso de residências para fins comerciais? Por que não formular uma política de incentivo à ocupação dos imóveis que, desde sempre, foram destinados a abrigar o setor de negócios?
Esse acúmulo de decisões irresponsáveis atinge, de maneira imediata, os Lago Sul, Lago Norte e Park Way. Mas não há como ignorar também os prejuízos diretos para o Plano Piloto. E, ao final, a conta terminará sendo paga por todo o ecossistema do Distrito Federal e por todos os seus habitantes. Em um momento no qual a emergência climática se impõe como um dos principais desafios globais, se refletindo inclusive em escassez de água e alimentos, parece lógico que a revisão da Luos deveria estar orientada por prioridades diferentes daquelas hoje adotadas pelo governador, seus secretários e nossos representantes na Câmara Distrital.
Cabe lembrar que Brasília ao ser declarada patrimônio cultural da humanidade pela Unesco, em dezembro de 1987, o então governador José Aparecido saudou a decisão como uma importante contribuição ao esforço de proteger a cidade dos especuladores, que não teriam qualquer compromisso com a manutenção do projeto original de Oscar Niemeyer e Lucio Costa.
Mais de três décadas depois, as evidências indicam que nada evoluiu com relação ao perfil dos agentes do mercado imobiliário, movidos pela perspectiva do lucro imediato, às custas do interesse maior da comunidade. Por sua vez, no que se refere ao cargo de maior responsabilidade do Palácio dos Buritis, não restam dúvidas de que o cenário mudou para pior. Resumo da ópera: a ganância, a ausência de visão estratégica, o desrespeito ao meio ambiente e o desprezo pelo futuro de nossos filhos e netos estão ganhando o jogo — e de goleada.
*Integrante da Associação Colina Dom Bosco e presidente do Conselho Comunitário do Lago Sul, entidade que integra a União dos Conselhos Comunitários do Distrito Federal
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