OPINIÃO

O direito a brincar e a dignidade das crianças

Correio Braziliense
postado em 28/10/2021 06:00
 (crédito: Gomez)
(crédito: Gomez)

RUTH LIMA - Pedagoga e gerente de Programas da Visão Mundial

A crise atual provocada pela pandemia do novo coronavírus fragilizou direitos fundamentais de crianças e adolescentes em todo o Brasil. Neste mês de outubro — em que mais uma vez voltamos nossa atenção para os temas da infância — precisamos ter em mente que há ainda muito a ser construído (e reconstruído) para que alcancemos um cenário minimamente aceitável de equidade e justiça social.

Atualmente, por exemplo, constata-se, pelo país afora, que milhões de crianças não têm sequer o direito a brincar. É isso mesmo: o ato de brincar, para elas, é tão importante para a sua formação, que é reconhecido não apenas por documentos internacionais, como a Convenção dos Direitos da Criança, mas também pela legislação nacional, como é possível identificar no artigo 227 da Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e também no Marco Legal da Primeira Infância.

Brincar tem sua importância estabelecida legalmente, porque é reconhecido como uma atividade indispensável para o desenvolvimento integral da criança, auxiliando-a em suas habilidades motora, social, emocional e cognitiva. É por meio da brincadeira que ela tem a oportunidade de entender o mundo e aprender sobre si e o outro. Por isso, a promoção desse direito, para muito além de um dever dos pais, mães, responsáveis e da família, é uma obrigação do Estado.

No entanto, se, por um lado, existe o reconhecimento legal de que precisamos garantir o direito à brincadeira; por outro, não há na prática a aplicação do que é previsto no direito. Afinal, como pensar em divertimento e recreação, se um em cada quatro brasileiros diz que a quantidade de comida na mesa para alimentar a família foi menos do que o mínimo ideal durante a pandemia, segundo pesquisa deste ano do Datafolha? Nota-se aí o descumprimento do art. 4º do ECA e a complexidade do problema que nos afronta.

Os dados alarmantes não param por aí. De acordo com o relatório O Estado da Insegurança Alimentar e Nutrição no Mundo, elaborado por diferentes agências da Organização das Nações Unidas (ONU) e uma das principais referências de dado para a construção de políticas públicas contra a fome, até 811 milhões de pessoas se encontravam em situação de desnutrição em 2020 no mundo todo. Além disso, o estudo também aponta que 30% da população global não teve acesso a refeições de qualidade durante o último ano — problema agravado agudamente pelo aumento dos preços dos alimentos, uma situação que temos observado com preocupação no Brasil.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a inflação oficial do país acumula alta de 9,68% nos últimos 12 meses, a mais elevada desde 2016. Em algumas capitais, a cesta básica consome 65% do salário mínimo, empurrando os mais pobres cada vez mais para uma curva de vulnerabilidade que, até pouco tempo atrás, não se identificava no Brasil. Para as crianças, a situação é sempre mais dramática, pois a alimentação de qualidade é fundamental para o seu desenvolvimento.

Esses dados, portanto, mostram como a desigualdade social tem impedido que meninas e meninos tenham seus direitos mais fundamentais respeitados e garantidos. Isso se concretiza também quando vemos crianças, em diferentes contextos sociais, precisando se preocupar mais com o trabalho do que com a educação formal. Ao tirarmos delas o acesso à única ferramenta de crescimento humano, não estamos fazendo nada além de perpetuar um sistema que é desigual, cruel e indignante.

Outro problema: o aumento da população urbana, cada vez mais desordenado, toma sem freio os espaços nos quais as crianças poderiam ter oportunidades seguras de interação e lazer, intensificando diversos tipos de violência, seja nas escolas, seja entre as famílias, nas ruas e em outros espaços comuns.

Todos esses fatores acabam por influenciar negativamente o acesso da criança à brincadeira, à recreação e às atividades culturais e artísticas. Sendo assim, ao recordarmos que outubro é, como popularmente chamamos, o mês das crianças, não podemos deixar escapar a necessidade de que sejam lembradas não apenas em um mês ou dia específicos do ano, mas, sim, o tempo todo. Afinal, a promoção dos direitos fundamentais das crianças, incluindo o direito a brincar, é resultado de um trabalho constante e perene da sociedade.

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