OPINIÃO

Maconha e canabidiol: lazer e saúde pública

ANTONIO LICIO - Economista, PhD e consultor em Brasília

Inovação revolucionária e recente na história da medicina foi a descoberta, no final do século passado, de mais um sistema na fisiologia dos humanos e outros mamíferos denominado “endocanabinoide”, capaz de regular várias funções como dor, inflamação, humor, memória e metabolismo, entre outras. Isso se dá por meio de dois receptores CB1 e CB2, que atuam, respectivamente, sobre os sistemas nervoso e imunológico, predominantemente. O mau funcionamento desse sistema resulta em patologias principalmente neurológicas — epilepsia, escleroses múltipla e lateral, Parkinson, fibromialgias, dores crônicas — ou ligadas a nossas cognições, como autismo e Alzheimer, entre as mais notáveis. A literatura específica é ampla e grande parte está consagrada nos anais da medicina moderna, sem falar nas observações empíricas de casos aos milhares, especialmente no Mundo Ocidental, onde todos os países estão envolvidos em investigações científicas para o mais perfeito conhecimento do assunto.

Na taxonomia botânica, existe um gênero de plantas denominada Cannabis spp (família Cannabinacea) da qual derivam três espécies principais: sativa, indica e ruderalis (alguns botânicos classificam diferentemente as duas últimas como subespécies da primeira, mas isso é irrelevante para nosso propósito). Cada uma delas tem diferentes concentrações de mais de 60 compostos químicos denominados “canabinoides”, dos quais os cinco principais são: 1) canabidiol CBD; 2) tetrahidrocanabidiol THC; 3) canabigerol CBG; 4) canabinol CBL; e 5) canabichrome CBC.

O conhecimento científico e empírico atual identificou o THC como responsável pelos efeitos psicoativos via inalação — maconha — enquanto o CBD responde mais pelas curas e controles das doenças acima relatadas e sem efeitos psicóticos, embora ainda não tenha sido possível separar as ações de todos os canabinoides juntos sobre as patologias, o que induz a seu uso conjunto no chamado “efeito entourage”. Por outro lado, é de pleno conhecimento mundial que a espécie Sativa detém maiores concentrações de THC, enquanto as duas outras concentram mais CBD. O cruzamento das três na natureza, ou agronomicamente, levou ao aparecimento de “variedades” ou “cultivares”, com diferentes concentrações de THC e CBD, tal como aparecem hoje nos mercados de sementes no exterior (uma outra “variedade” chamada “cânhamo” também é encontrada, mas não passa de variedades cruzadas com baixos níveis de THC).

A partir de 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) — agência reguladora de medicamentos do Brasil — cedeu às fortes pressões, principalmente, de pais e mães desesperados com as convulsões dos filhos acometidos por um tipo de epilepsia não controlada por medicamentos tradicionais e regulamentou as importações e uso de canabinoides (RDC 17/2015). Grande passo! Facilitou ainda mais o processo burocrático dessas compras externas em reunião de diretoria em 9/12/19 (RDC 327/2019), reconhecendo publicamente a eficácia dos canabinoides, sem permitir, todavia, o plantio em território nacional.

Faltou, assim, tratar do aspecto econômico: o canabidiol importado ou ligeiramente finalizado nos poucos laboratórios nacionais autorizados — geralmente via Justiça — é comercializado no varejo por preços entre R$ 2.150 e R$ 2.600 por frasco de 30ml com concentração de 200 mg/ml (informações da internet, em setembro/2021). Contas aritméticas simples revelam que o grama desse fitofármaco está custando entre R$ 358 e R$ 433, enquanto o mesmo grama de ouro vale R$ 308. E, o pior, esses preços tiveram aumento médio de 15% desde a abertura em 2020 até os dias atuais, segundo a mesma fonte, o que seria esperado se tivessem acreditado na teoria econômica, pois liberaram as importações — maior demanda — sem liberar a produção interna das plantas, que levaria à maior oferta, o que resultou em preços mais elevados com perspectivas ainda piores. E daí? Simples, vai-se ao Judiciário e exige-se a importação e pagamento pelo SUS! De novo...? Não teríamos outra solução?

Não é difícil entender as preocupações do Executivo em liberar o plantio de cannabis, pois o cultivo descontrolado pode levar também ao cultivo de variedades visando maximização de THC para recreação/inalação, o que ainda é tabu no Brasil, mas deve ser tratado por outras vias. Porém, a liberação controlada para fins medicinais somente para laboratórios autorizados — que poderiam subcontratar plantios — é de muito fácil controle, pois as plantas têm um ciclo de três a quatro meses, tempo mais do que suficiente para os órgãos inspecionar e testar seus níveis de THC, que não deveriam ser superiores a certo limite que desestimule a inalação (5%?), além de exigir a separação química de THC residual pelo processo industrial para descarte. Tomadas essas medidas, os preços caíriam drasticamente no curto espaço de cinco a 10 anos, tempo estimado para alguns dos atuais sessentões entrarem na faixa etária de encontro com o “alemão”.

Esperamos que os burocratas de nosso Estado não tenham que aguardar seus genitores serem acometidos por alguma dessas terríveis patologias senis — como foi o meu caso — antes de decidirem sobre o inquestionável direito dos brasileiros de serem tratados pelos fitocanabinoides a preços compatíveis com o nível de renda de nosso país. E, por favor, não reclamem da judicialização do Executivo!