OPINIÃO

Consciência e prática de cidadania

Correio Braziliense
postado em 02/11/2021 06:00

Por FABIANO HORTA - Prefeito de Maricá

Muita gente nem deve saber mas, no Brasil, a instituição do programa de Renda Básica de Cidadania é uma obrigação do Estado desde 2004, conforme previsto na Lei 10.835/04, de autoria do então senador Eduardo Suplicy, hoje vereador em São Paulo. O conceito prevê o pagamento de uma renda incondicional a todas as pessoas que moram no país para promover igualdade social e erradicar a pobreza.

A lei foi promulgada, mas não regulamentada. Agora, com a pandemia taxiando na pista depois de no olho do furacão, tornou-se evidente a necessidade de um programa de transferência de renda a quem mais precisa. A crise sanitária expôs fraturas sociais em alto grau, desespero e fome em um ciclo de alcance devastador.

O cenário estimulou louvável decisão do Supremo Tribunal Federal, determinando ao governo federal, já a partir do ano que vem, o estabelecimento do valor de uma "renda básica de cidadania" a pessoas em situação de pobreza ou extrema pobreza para realizarem despesas mínimas com alimentação, educação e saúde.

A resolução forçará a União, passados 18 anos, a regulamentar a lei, segundo a qual o benefício se aplica a todos os cidadãos, mas por etapas, e priorizando-se as camadas mais necessitadas. Mediante a meta para 2022, uma pergunta perturbadora ronda o pensamento. Por que precisamos de tragédias para o país mover-se na direção de obrigações?

Gestores das três esferas de poder, federal, estadual e municipal, correram em meio ao caos para pôr um bandaid em feridas graves que já poderiam ser tratadas ao longo do tempo pelos respectivos governos. O auxílio emergencial veio para tapar o câncer social, mas a pandemia, um dia, vai acabar. E a doença seguirá latente, à espera de um programa sustentável.

Vivenciamos todo o drama da pandemia em nossa Maricá, cidade da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Tivemos, porém, um diferencial. Já praticávamos a transferência de renda aos moradores — o que, segundo relatório de julho de 2020 do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), torna Maricá a única cidade a desenvolver o programa de renda básica de cidadania em todo o país.

Em 2013, ainda três anos antes de receber royalties do petróleo, Maricá criou a moeda social Mumbuca, um cartão eletrônico que permite ao beneficiário gastos apenas na economia local. O modus operandi de economia circular resulta em 42.500 moradores recebendo créditos em Mumbuca de R$ 300 por mês, e inserindo um total R$ 12,7 milhões mensais na engrenagem financeira do município.

Engana-se quem imagina que a Prefeitura acaba no prejuízo. É o contrário. A lógica do ganha-ganha leva à maior formalização e arrecadação. Subimos 50 posições nos últimos seis anos no Índice de Participação dos Municípios (IPM), saltando do 53º ao 3º lugar no ranking divulgado pela Secretaria estadual de Fazenda. E, no primeiro semestre deste ano, aumentamos em 11,82% a empregabilidade local.

A transferência de renda é absolutamente possível, e basta a decisão política do gestor. Alvissareiro é notar que o mundo pede a vez para a implementação de programas assim. No livro Vamos Sonhar Juntos, o papa Francisco apela para que governos instituam, de forma perene, programas de renda básica universal. António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), é outra voz imponente a pregar atenção prioritária aos mais necessitados. Guterres tem alertado que mudanças na economia global no século 21 exigem de todos os povos o fortalecimento de sua rede de proteção social.

Enquanto isso, de tão isolada na prática da renda básica dentre as 5.570 cidades do país, Maricá chamou a atenção até da mídia estrangeira, figurando em reportagens nos Estados Unidos, na Europa e Ásia sobre a transferência de renda aos cidadãos — que inclui, ressalte-se, a oferta gratuita de transporte público em ônibus e bicicletas em todo o município. A expectativa para o cumprimento em 2022 da determinação judicial do STF traz, portanto, amplitude à conscientização de governantes. E o exercício desse círculo virtuoso, além de tudo, é prazeroso. Alimenta a alma e a empatia da gestão ao gerar pertencimento, dignidade e oportunidades.

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