Sim, incomoda. O estômago que revira sem nada, a barriga vazia que dói. A vista turva, o corpo frágil e trêmulo. A fila diante do caminhão de lixo. Meu Deus, um caminhão de lixo! Pessoas degradadas a zumbis reviram os sacos com restos de comida misturados a papel higiênico usado, preservativos e sabe-se lá mais o quê. Uma senhora carrega um balde. Espera a sua vez de caçar algo que possa comer. Outros homens se debruçam sobre o compartimento onde os restos são amassados e lançados para dentro da caçamba. Em algum lugar de Brasília, um engravatado se resfolega depois de um banquete farto. A camisa quase desabotoa ante a saciedade. O suor rompe-lhe a face. Sente-se completo.
Como incomoda o bando de gente transformada em semiabutres. De cócoras no chão, catam pedaços de ossos. Talvez os nacos alimentariam cães ou iriam para alguma indústria de ração. Dali para uma fazenda, onde voltariam em forma de ossos. De cócoras no chão, também está a dignidade do ser humano. A mesma dignidade que enfeita o inciso III do artigo 1 da Constituição de 1988. Um princípio fundamental menosprezado, achincalhado por nossas autoridades. As mesmas que se fartam com o dinheiro público e se dizem dignas de confiança e de reputação ilibada. Anos atrás, li uma reportagem no Correio sobre uma família da Estrutural que assava um rato para comer. A fome faz voltar à era das trevas.
Em um semáforo qualquer, um pai de família segura um cartaz. Está desempregado. Assim como mais de 14,4 milhões de brasileiros lançados na incerteza, tragados pela crise econômica. Pede dinheiro, tem a chave do PIX. Não sabe o que comerá amanhã. Teme pela saúde e pela vida dos filhos. O engravatado, dentro do carro funcional com ar condicionado e motorista particular, nem sequer mexe os olhos. Tem pressa de chegar ao almoço com os financiadores de campanha. Tateia o celular de última geração em busca da cotação do dólar e da agenda de reuniões com os lobistas. A vida é curta demais para se preocupar com amenidades.
Incomoda, sim. O retrato dos pais colocado na mesinha da sala que virou santuário. Das cadeiras vazias à mesa. Deram lugar à saudade. A alegria da família roubada pela covid-19, pela letargia política, pelo desprezo com a saúde e a dignidade humana. Saudade que rasga a alma ante o luto inacabado. Não houve despedida, não houve caixão aberto nem a sensação de finitude. Incomoda tantas mazelas em um Brasil que poderia ser potência mundial. A fome voltou. A inflação, o desemprego, o luto. Ficamos cada vez mais órfãos de esperança.
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