Opinião

João Carlos Souto: "eu e dona Canô"

Correio Braziliense
postado em 14/12/2021 06:00

JOÃO CARLOS SOUTO - Professor de direito constitucional, procurador da Fazenda Nacional, autor de Suprema Corte dos Estados Unidos — Principais decisões (4ª ed/2021)

Foi por volta de 1982 ou 1983. Fins de 1982, início de 1983, creio. Diferentemente de Jorge Amado, com quem eu tirei uma foto na sua posse como membro da Academia de Letras da Bahia (e na semana seguinte publiquei em A Tarde um artigo sobre a obra de Jorge), com dona Canô, o contato foi um pouco mais longo e intimista, por assim dizer.

Fui com um amigo com quem trabalhava na Companhia de Eletricidade da Bahia (Coelba), notória cabine de emprego na década de 1980. Ele era colega de trabalho de Rodrigo Veloso, irmão de Caetano, filho de dona Canô.

O apartamento dos Velosos era amplo, confortável, decorado de forma simples, relativamente simples. Um prédio sem muito luxo, mas confortável. Ainda hoje me lembro das pastilhas brancas e azuis, um azul assim como os olhos de Hala Gorani, âncora da CNN, a quem assisto agora enquanto escrevo estas linhas.

O apartamento ficava em Nazaré (bairro de classe média de Salvador), um local que conheço bem. Durante três anos, fui aluno do segundo grau de uma escola pública bem próxima, Colégio Estadual Severino Vieira, onde Gilberto Gil também estudou, num passado um pouco mais distante, sobre o qual mencionei em uma crônica (As pedras do Central), publicada na Revista Justiça Fiscal (número 5, julho/2010, p.22/23).

Ficamos lá ouvindo música durante uma "pá" de tempo. Creio que bebemos água e suco. Em seguida, jantamos a "janta" possivelmente preparada (ou por certo supervisionada) por dona Canô. Seu Zezinho (o patriarca dos Velosos) também estava lá, mas permaneceu por menos tempo conosco.

Dona Canô falava pausadamente, com uma doçura que o Arquiteto Supremo somente concedeu a poucos. Perguntada sobre o mais recente LP (para os mais jovens LP é aquela bolacha de vinil, com dois lados, antecessor do CD), respondeu em termos: "Ah! Gostei, mas não da capa". Ah, sei lá, beijando o pai na boca!"

Explico: O LP Cores, nomes, de 1982, trazia na primeira capa Caetano Veloso, com um chapéu azul, de uma cor próxima ao papel que no passado recente envolvia as maçãs. Esse LP tinha um encarte (um anexo) riquíssimo, plural, multifacetado, diria Caetano. E, nesse encarte, havia um foto de Caetano, em perfil, e outra do pai. Quando o encarte era colocado dentro da capa do LP dava a impressão que Caetano estava beijando a boca do pai, seu Zezinho.

A foto não é a única alusão ao beijo na boca. Há uma composição também, com o título: Ele me deu um beijo na boca, de autoria de Caetano, que integra esse LP Cores, nomes. A foto, não a música, era o motivo desse little complaint de dona Canô. Fui testemunha dessa pequena queixa, dita de uma forma muito doce, à minha frente, em pé, se apoiando na cadeira, com uma das mãos segurando o queixo.

Aquela noite para mim foi quase mágica, para além de especial. Saindo da adolescência, na casa dos pais de Caetano Veloso, ouvindo histórias (de como ele compôs Quero ver Irene dar sua risada), na companhia (rápida, mas na companhia) de Dona Canô e, de quebra, tendo um jantarzinho familiar, me livrando do café (não jantávamos) do Pensionato de Dona PQ, da Rua da Mangueira, com poucas opções e baixíssima caloria.

Dona Canô partiu definitivamente em 25 de dezembro de 2012. Deixou importante legado. Pariu, há 79 anos, Caetano Veloso, um dos mais importantes e versáteis compositores e homem de letras da língua portuguesa. Pariu Maria Bethânia, umas das mais importantes intérpretes da MPB.

Esse LP, de 1982, Cores, nomes, acolhe uma das mais importantes e certamente uma das mais elegantes composições de Caetano Veloso:Trem das Cores. Ela fala de um "céu de azul celeste celestial". Completo: o que hoje acolhe Dona Canô.

Dona Canô, um abraçaço para a senhora.

 


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