Opinião

Ricardo Nogueira Viana: "o Zumbi nosso de cada dia"

Correio Braziliense
postado em 21/12/2021 06:00

RICARDO NOGUEIRA VIANA - Delegado Chefe da 6ª DP e professor de educação física

Em 20 de novembro de 1695, após várias incursões à Serra da Barriga, as tropas de Jorge Velho, comandadas por André Furtado de Mendonça, chegaram ao Quilombo de Palmares e assassinaram Zumbi e o restante do seu exército de resistência. O interesse em abater Palmares nada tinha a ver com o poderio militar dos negros, mas sim a ameaça que eles indicavam aos alicerces da ordem escravagista.

Em homenagem ao líder negro, o qual tem a sua biografia marcada por inações, afrodescendentes e antirracistas refletem sobre o passado, o presente e tentam erguer um depois. O pretérito do povo negro é marcado, principalmente, pela ausência de registros sobre a sua chegada, permanência e liberdade em solo brasileiro durante os séculos de escravidão. É o dia da consciência negra.

A partir de 1535, foram aportados à América mais de 12 milhões de escravos oriundos de países africanos, sendo que o Brasil recebeu quase metade. Destes, 1,8 milhão morreram na travessia do Atlântico e foram arremessados aos tubarões. Vergonhosamente, fomos o último país da América a abolir a escravidão. Os negros eram tratados como coisa, tinham proprietários, imploravam por comida e sofriam castigos severos. E quem eram essas pessoas, as quais deram origem a 56% da nossa população, segundo IBGE?

Coincidente, neste mês, encontrei um amigo de origem polonesa, cujos pais chegaram ao Brasil após a Segunda Guerra. Ele me mostrou a sua árvore genealógica, pessoas que participaram na formação da família. Os antepassados do meu parceiro branco remontavam a 1712.

Estavam descritos quem eram, o que faziam e o mais engraçado, quase todos eram importantes. Saí do encontro tentando montar a minha representatividade e não fui muito longe. Creio que como todo afrodescendente, conseguimos regredir até três ascendências e alcançamos um substantivo em comum a designar a seguinte, escravos ou cativos. Não se têm nomes, certidões, lugares que habitavam, quantos filhos, mas sim, alguma coisa do tipo, ouvi falar e nada mais.

Tentei através do meu sobrenome e também não avancei. Possuo dois, o primeiro remonta a uma árvore e, segundo relatos, eram comuns aos negros libertos adotarem nomes da natureza para construírem suas identidades. Passo seguinte, fui para o último nome, o qual me remontou a um político do estado do Maranhão. Segundo relato de um primo, nossa tataravó era uma escrava da fazenda e reproduziu um filho de um dos proprietários, não se sabe exatamente qual deles, mas era da família. Isto, a minha origem teve uma ou mais mulheres negras estupradas. Esta gerou alguém por parte do clã, dali em diante recebeu o seu nome, o qual foi passado para a sua prole.

Esse é um dos reflexos covardes da escravidão, sabemos quem somos, mas não de onde viemos. Após a Lei Áurea, o então ministro da Fazenda, Rui Barbosa, ordenou a destruição de todos os documentos relativos à posse de escravos. O intuito seria evitar o pedido de indenização por parte dos aristocratas, o que traria um efeito devastador às finanças do país. Portanto, não há como avançar na busca de nossa ascendência.

Mas uma coisa é certa, se hoje vivemos, é porque um guerreiro foi capturado e subjugado, passou pela porta do não retorno, sobreviveu aos porões dos tumbeiros — navio negreiro, foi comercializado, castigado e conseguiu se reproduzir para que aqui estivéssemos.

Dia da consciência negra é o momento de ressignificar o passado, apesar de poucos registros físicos, mas de muito sangue. Zumbi é singular, pois é um dos únicos negros contados pela história. Quantos negros anônimos resistiram com a vida aos castigos severos, às incontáveis chibatadas, à subtração de suas crianças e à violência sexual? Se hoje se abre um parêntese às mulheres negras, imaginem em uma senzala, sendo abusadas e violentadas constantemente ao alvedrio de seus senhores.

Estamos falando de pessoas que, apesar de serem consideradas coisas, objetos, sofreram, morreram e formaram com suor e lágrimas o povo brasileiro. Também é o momento de avaliar o presente, consolidar balizas e prosseguir lutando por igualdade e respeito. Sim, não somos iguais. Desde uma abolição imprudente, que empurrou o povo negro para as margens da sociedade, à ausência de políticas públicas que o mantém nesta condição: ocupando favelas, cadeias e morrendo de forma hemorrágica.

Ações afirmativas não se restringem a cotas em universidades e concurso públicos, pois há falhas sensíveis na educação básica e o negro que habita favelas não tem o que comer e vestir, tampouco onde habitar. Quanto ao futuro, será reflexo das nossas ações e omissões. Em 2022, ano eleitoral, seria o momento de união para que elegêssemos representantes compromissados com os anseios da negritude, pois somos muitos.

A maioria vence, desde que saiba o que quer. Eleger e nomear mandatários, não necessariamente negros, pois alguns que hoje ocupam as esferas de poder bradam por tolices, como uma escravidão benéfica ou que vivemos uma democracia racial. Mas, acreditar e eleger pessoas que tenham empatia com que o negro, sobrevivente desta sociedade hierarquizada, viveu e anseia para construir uma nação mais justa e igualitária.

 


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