Visão do Correio

O fundão do escárnio

No discurso, em público, eles aparecem sempre em lados opostos. Cada um numa extremidade do espectro político. Mas quando se trata de legislar em causa própria, ambos agem em sintonia e com igual desdém pelos cidadãos que dizem defender. Foi assim na última sexta-feira, quando parlamentares do Centrão e do PT se uniram para derrubar veto presidencial e destinar R$ 5,7 bilhões dos cofres públicos à campanha eleitoral de 2022. E o povo? "O povo que se exploda", como diria o deputado Justo Veríssimo, personagem criado pelo genial Chico Anysio. Síntese perfeita do comportamento típico de certos políticos brasileiros.

Na prática, o fundão bilionário coloca o Brasil no topo mundial do uso de dinheiro público destinado a financiamento de campanhas políticas, conforme estudo do Movimento Transparência Partidária, com base em dados de 25 das principais nações do mundo. E veja o absurdo da situação: os R$ 5,7 bilhões são recursos arrancados do bolso de todos nós. Em média, os brasileiros trabalham quase seis meses por ano apenas para pagar tributos e engordar os cofres públicos. Ou seja: esse dinheiro custou-nos um esforço tremendo. E poderia ter destinação mais nobre: a educação, a saúde e, por que não?, para matar a fome de milhões de famílias que, descobriu-se em meio à pandemia, estão à margem de qualquer programa social. Em vez disso, vai bancar a campanha eleitoral mais cara da história do país.

Agora, adivinhe quem são os políticos que mais devem se beneficiar com a farra às custas do dinheiro que pertence ao povo brasileiro? Sim, são eles, os extremos, à direita e à esquerda, que polarizam as intenções de voto, hoje, segundo institutos de pesquisa. De um lado, Bolsonaro e o Centrão. De outro, Lula e o PT. E o surreal é que tanto a campanha de Bolsonaro quanto a de Lula devem apresentar um e outro, na eleição, como "o pai dos pobres". Um devido ao Auxílio Brasil. O outro, ao Bolsa Família. Contudo, na hora do ataque aos recursos do erário, tanto a turma do Centrão quanto a do PT agiram com um descaramento de dar inveja a Justo Veríssimo.

De fato, política, no Brasil, não é para amadores. O veto presidencial reduzia o Fundo Eleitoral a R$ 2,1 bilhões. Mas, ao que tudo indica, o óbice à gastança inédita era só jogo de cena. Afinal, na hora da votação na Câmara, dos 50 deputados do PL, partido de Bolsonaro, apenas dois não se posicionaram a favor da derrubada. No PT, de Lula, 49 dos 51 parlamentares mandaram o veto para o espaço. No final, o placar na Casa ficou em 317 a 146. Entre os partidos em que a maioria se opôs ao fundão estão Podemos, Cidadania, Rede, Novo, PSol, PSL e PSDB, apesar de o líder da bancada tucana ter orientado o voto a favor da gastança exorbitante. No Senado, não foi diferente: o placar ficou em 53 a 21.

Em suma, além do imenso desgaste à imagem do Congresso Nacional, há, ainda, o risco de os R$ 5,7 bilhões que bancarão a farra eleitoral sem precedentes de 2022 fazerem falta em outra frente: a do combate ao coronavírus. Afinal, o mundo enfrenta a pior crise sanitária de todos os tempos. E o mais grave: diante de um cenário de incertezas, com as variantes delta e ômicron provocando muito medo mundo afora. Nos Estados Unidos e em países da Europa e da Ásia, os casos de infecções, internações graves e mortes por covid-19 voltaram a aumentar. E muitos governos anunciaram medidas duras, como lockdowns e restrições à entrada de estrangeiros, para tentar conter a escalada das novas cepas.

No Brasil, onde a pandemia já provocou mais de 20,2 milhões de casos e cerca de 618 mil mortes por covid-19, a delta, felizmente, não teve o mesmo impacto devastador observado em outros países. Quanto à ômicron, nos casos de infecções detectadas até agora, as pessoas sentiram apenas sintomas leves. Mas como se trata de uma variante altamente contagiosa e da qual ainda se sabe muito pouco, cientistas recomendam cautela. O recado foi seguido pela maioria das capitais brasileiras, onde as festas oficiais de réveillon acabaram suspensas. No Congresso, no entanto, sobrou oportunismo e faltou bom senso aos políticos que avalizaram o fundão.

 

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